segunda-feira, 16 de novembro de 2009
Eu sinto muito (Rodoanel, 13/11)
Durante meses, olhava para as obras do Rodoanel, no trecho em que ele cortará a Régis Bittencourt, no Embu, e pensava que deveria tirar um dia para fazer umas fotos. Um fim de tarde, depois mais passadas por lá. Fui observando a estrada se formar assustadoramente rápido e sentindo este desejo crescer. Mas não fui. Até sexta feira, 13 de novembro.
Meu irmão chegou em casa beirando às onze horas da noite dizendo que a vinda de São Paulo para Itapecerica tinha sido muito mais demorada que o previsto: o rodoanel caiu. Foi um susto, um medo, um choque. Caiu? Sobre alguns carros e um caminhão. Caiu? Me parecia tão grande esta idéia, um novo acidente em obras estatais. Uma rápida pesquisa na internet e ninguém sabia ainda informar nada. Nenhuma foto. Ir até lá ou não ir? Os carros não chegavam, o tráfego estava completamente interditado. E como voltar? Bem, dá-se um jeito. O fato é que cheguei, perto da meia noite, para encontrar um cenário comum a acidentes destas proporções: muitas viaturas, muitos policiais, bombeiros, jornalistas, fotógrafos. E o triplo deste número de curiosos, espalhados por barrancos e beiras de estrada. A pista liberada, sentido Curitiba, tinha um trânsito muito intenso, com pesados caminhões de faróis ofuscantes. Um caos controlado.
O sob o viaduto incompleto, a cena aberrante. Do caminhão, não se via a cabine, apenas a carroceria, com as rodas para o céu. Um carro vermelho, também capotado, parecia uma joaninha já cansada de agitar as pernas no ar. E um terceiro carro, tão esmagado, que parecia impossível que alguém pudesse ter estado ali dentro um dia. Estava tão achatado que não se identificava sua cor (só no dia seguinte soube pela TV que era preto). Os três motoristas já tinham sido socorridos, mas as notícias sobre seus estados de saúde eram obscuras. Neste embróglio todo, se viam pedaços das três vigas despencadas. A quarta ainda ligava os dois pedaços do viaduto incompleto e podia cair a qualquer momento. Um grande guindaste se preparava para retirá-la. Dois helicópteros zuniam. Um deles parecia procurar pouso e, de fato, pouso poucos minutos depois que cheguei.
Depois de fazer algumas fotos, principalmente do caminhão que absurdamente parecia plantar bananeiras, pensei que tinha chegado tarde. Então pressenti um princípio de tumulto. Era o governador José Serra, já cercado pelos repórteres televisivos. Antes da coletiva de imprensa que daria, se encafifou num canto, entre um carro de bombeiros e uma mureta, conversando com seus assessores ou ao celular. Policiais, dando as mãos, o isolaram dos jornalistas ansiosos que o encurralavam. Um jovem fotógrafo, com uma imensa e pesada mochila, abria caminho com os cotovelos. Percebi então, que há muitos anos não levava cotoveladas de fotógrafos. Mas aos poucos a imprensa se pacientou à espera da coletiva. E eu fiquei onde já estava, com a mão de dois policiais que faziam o cordão de isolamento encostadas no meu corpo, me separando do governador por pouco mais de um metro. Nesta quietude de espera, vi o governador, por quem, cá entre nós, nunca nutri simpatia, se transformar num homem. Um puro e simples homem. No que ele estava pensando? Nas implicacoes politicas do acidente? No proveito eleitoreiro que seus adversários tirariam disto? Nas consequencias práticas? Nas pessoas que estavam no hospital? Nas toneladas que caíam sobre suas costas? Não ouso dar um palpite. Mas me lembrei que até o mais vil dos políticos (e não é este o caso), também é um homem. E ele me pareceu, de repente, ali no escuro, de cabeça baixa, mão segurando o queixo, tão... vunerável. Era uma bomba que explodia em suas mãos. Uma responsabilidade desmedida da qual ele deveria dar conta. Era um homem e seu problema. Mal percebi que o volume de pessoas se deslocava enquanto eu continuava com minha lente apontada para seu rosto, esperando um pouco de luz. E ele me olhou. Baixei a câmera. Ele sorriu. Um sorriso triste, muito triste.
Dizem que nas faculdades de comunicação se ensinam a importância do tal jornalismo imparcial. É verdade? Não sei, sou formada em Desenho Industrial e passei os últimos dez anos trabalhando como jornalista porque sou mesmo muito cara de pau. Mas, a imparcialidade, é fato? Nunca acreditei muito nela e, se a resposta é positiva, reconheço que, então, tenho este péssimo defeito profissional: eu me envolvo. Chorei quando me despedi do centenário senhor Shunji Nishimura, chorei com a morte de seu Zito, fiz amizade com os pescadores da Juatinga. Ali, já estava eu novamente entregue, sofrendo pelo estrago causado, preocupada com as vítimas, solidária com os trabalhadores, tanto da obra quanto do resgate. E também com aquele homem triste, responsável por trazer soluções. Eu também estava triste. Uma rápida olhada na posição em que os carros estavam eram suficiente para se ter uma clara noção do tamanho do estrago. Era a morte rondando muito de perto, como uma fera acuando pessoas. Foram três carros, três vítimas que sobreviveram. Mas poderiam ter sido muitas. Um ônibus poderia ter sido atingido, muitos outros carros, muitos passageiros. Era, de fato, inacreditável que tenham sido apenas três as pessoas atingidas. E mais inacreditável ainda que tivessem escapado do tombo de toneladas de concreto com vida. Eu estava totalmente compassiva e só não chorara ainda por conta do estado de alerta que a fotografia provoca.
Depois da coletiva, em que o aglomerado de câmeras não me permitiu proximidade suficiente para ouvir alguma resposta, o governador se dirigiu ao helicóptero. Com todos nós na sua cola. Fui bem na frente e fiquei esperando. Os assessores impuseram um limite, pediram que ninguém ultrapassasse aquela linha, aninharam Serra no caminho. Então, não sei como, de repente me vi sozinha naquela linha, de frente para o governador livre, inexplicavelmente, de seus protetores. Nenhum outro fotógrafo, nenhum repórter de tv, nenhum assessor. E eu que, repito, nunca tive afinidades políticas ou simpatia pessoal, sentia uma grande compaixão por aquele homem. Com sua imensa responsabilidade, sua tranparente tristeza. Fomos nos aproximando um do outro, como se eu tivesse o dever de lhe falar e ele soubesse disto, até que ficamos cara a cara. Ficando na ponta dos pés, pude dizer próxima a seu ouvido, baixinho e pausado, três únicas palavras:
- Eu...sinto... muito!
O home triste me deu um leve beijo no rosto e respondeu, também em voz baixa:
-Obrigado.
Quando o helicóptero levantou vôo, e o aglomerado de jornalistas e curiosos tomou o rumo do acidente novamente, deixei que as lágrimas viessem. Aliviada em saber que, pelo menos desta vez, a morte tinha apenas tentado, sem levar ninguém com ela.
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