quarta-feira, 25 de novembro de 2009
A "Greguinha"
O dia amanhece com o cheiro de café recém-coado e o barulho das batedeiras manuais de açaí, vindos das pequenas casas de madeira enfileiradas na beira. Era preciso esperar ainda algumas horas enquanto a vazante recolhia as águas do rio Araramã e deixava a margem finalmente exposta. Desço do nosso barco e caminho pela única rua, uma espécie de trapiche de madeira, que compõe a Vila Tessalônica, uma comunidade a seis horas do centro da cidade de Afuá, na região do Arquipélago do Marajó, no Pará.
Uma mulher me chama e, enquanto aponta um local, me fala: “Venha ver a greguinha”. Aproximo-me da beira enlameada e, sob uma grande árvore, vejo, ainda semienterrada, uma urna funerária. Apenas uma parte aflora à superfície. Neste pedaço, desenhos incisos realmente se assemelham a volutas gregas, caprichosamente traçadas em relevo.
Uma peça arqueológica produzida pelos índios marajoaras, que ocuparam a área entre os anos 450 d.C. e 1350 d.C. Além da greguinha, várias outras urnas se exibem cada vez que o rio baixa. Para os moradores da Vila Tessalônica, esta convivência com o passado remoto já faz parte de suas vidas. Seu Joaquim Ferreira tem 70 anos, um bigode ralo e branco, e nos conta que foi um dos primeiros a se mudar para o local, há mais de 40 anos. “Nesta época, tinha muito mais vasilhas. Hoje existe pouca peça inteira, à mostra, a maioria foi quebrando com a força da água.”
Com a voz tranquila, ele me fala sobre a fantasia muitos têm de que as urnas eram potes usados para se guardar ouro. Mas ele sabe que o objetivo era outro. “Elas serviam para agasalhar os mortos.” A vila - um pequeno alinhamento de casas, com uma igreja evangélica e um posto médico - está postada às margens do rio Araramã. E inocentemente plantada sobre um aterro funerário, onde possivelmente se realizavam ritos sagrados.
O fato é que, por todo o Arquipélago de Marajó, esses vestígios da passagem do homem antes da chegada dos europeus são imensos. Quando boa parte das ilhas passou a ser ocupada por fazendas que investiam em pecuária bufalina, com a chegada dos robustos búfalos de chifres tristonhos, muitas peças passaram a ser encontradas. Durante 15 dias, fomos com nosso barco visitando diversas dessas localidades. Em todas, fragmentos de cerâmica iam avisando que, por ali, passou alguém num passado remoto (...)
Naquela manhã na Vila Tessalônica, onde me mostraram a greguinha, não compreendi sua real importância. No caminho de volta, enquanto o barco serpenteava vagaroso pelas águas escuras do rio Araramã, observei em silêncio suas margens tomadas pela mata fechada, com altos açaizeiros espetados aqui e acolá. Só então me dei conta de que toquei com meus dedos um objeto sagrado. Uma peça moldada por mãos hábeis de alguém que viveu há séculos, talvez um milênio, para agasalhar o corpo de outra pessoa, num ritual de respeito e devoção. Quem foram esses antigos habitantes do Brasil? Para que deuses elevavam suas vozes? Com que nomes batizavam seus filhos? Que mensagens inscreveram no barro cozido dessas urnas? Segredos guardados por tantos anos, enterrados numa terra que hoje é pisada pelos pés de outros homens. Outros homens que têm, por sua vez, os próprios segredos para zelar.
(Este texto é parte de uma reportagem publicada na Rolling Stone, ed.31, abril de 2009)
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E é assim mesmo? Quer dizer que a cena - "greguinhas" que aparecem e desaparecem com a maré - se repete há séculos, resistindo à ocupação humana recente?
ResponderExcluirE a vila ainda se chama Tessalônica?!
(chocado)