domingo, 26 de setembro de 2010

Chiclete

Testou o e-mail alternativo: senha incorreta. Uma friagem escorregou pescoço abaixo, abraçou costas e peitos. Ele mudou a senha. Então soube que não adiantava mais continuar fingindo que não sabia. Depois de semanas de palavrório mal convincente, era hora de ter provas para esfregar na cara do safardana. Encerrar o ato.
Olhou a dica de senha: é de mascar. Oito letras. Tão fácil que ela compreendeu, quase compassiva, que tudo o que ele mais ansiava era que ela descobrisse. Na sua frente apareceu uma longa lista de mensagens. Todas de uma mesma pessoa: uma de suas mais queridas amigas. A vulva loira. Sirigaita!
Bastava ler a primeira. Leu todas. Um mês de paixonite descritos nos detalhes tão necessários aos apaixonados. O violão que ele tocava. E ela ouvia. O hotelzinho onde se acostavam. O restaurante onde comiam. O desconforto que ela descreveu, num muxoxo sentidinho, por ele ainda não ter passado a mão nos trapos e tirado a escova de dentes do armário. E a facada final: o convite que ele fazia para o aniversário do tio dali um mês.
Nem todas as declarações piegas de amor entre os dois, que se chamavam por diminutivos fofinhos, foram tão doloridas quanta a festa do tio Waldir. Pitombas! Como ele podia levar a sirigaita numa festa de familiagem reunida se ainda estavam casados? Há cinco anos casados! Por alguns minutos, o chão escapou. Na leveza do susto, que travou o estômago e provocou uma sensação de alheamento, não teve vontade de dizer palavra.
Copiou os textos de todos os e-mails trocados entre os dois e mandou para ele. No assunto, uma frase de amor qualquer. Nem uma palavra a mais. Fim do último ato.
De vez em quando, o tio Waldir dá as caras na sua lembrança. Gostava dele, bom sujeito.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Um Motivo

Estou na cozinha da nossa pequena casa de madeira. Vejo minha mãe -uma baiana que está há tantas décadas em São Paulo que já nem lembra que nasceu em outro estado- ao fogão. Ela está fritando grandes batatas cozidas, recheadas com uma fatia de mortadela: uma iguaria que, depois de adulta, fiquei sabendo que se chama “batata cansada”. Sei que bebemos tubaína. Aquela da garrafa de vidro marrom, que tinha no rótulo um desenho de frutinhas para mostrar que era sabor “tutti frutti”. Muitos fogos, muito barulho. E um cachorro vira-lata bem guaipeca, preto de patas amarelas, que, como a maioria dos cachorros da época, era batizado de Duque. Pela porta da sala, vejo meu pai, um funcionário público do baixíssimo escalão, e nosso vizinho eufórico. Acho que estão carregando bandeiras. Sei que vamos todos sair no nosso fusca cor de vinho, que tinha um adesivo do Fred Flintstone e era chamado de Canejão. Vamos nos juntar aos muitos carros que já buzinam nas ruas desta cidade periférica.
Mas lembro, sobretudo, da alegria. Uma tão grande alegria que não se podia explicar a uma criança tão pequena. Eu tinha, em 1977, apenas 4 anos e olhava os adultos encantada com sua euforia.
Poderia enumerar mais um grande número de razões. Mas esta pequena lembrança, da quebra do jejum de 23 anos (na verdade, foram 22 anos, 8 meses e 7 dias) sem título, escurecida pelo tempo como uma foto mal fixada, é suficiente. Este pequeno registro afetivo me basta para compreender porque sou corintiana. E porque sempre serei.