A senhora vem numa cadeira de rodas. Falta-lhe a perna direita, amputada na altura da coxa. A esquerda está enfaixada e sua pele é ainda mais escura que o resto do corpo marrom. Penso com certa aflição que em breve terá o mesmo destino. Quero observá-la enquanto se aproxima de mim, mas sua filha me fita e me acabrunho com a seriedade de seu olhar.
Por aqui passam vários cegos. Um, dois, três... Cada bengala é um terceiro olho. Ou talvez o único. De longe, atento para a ponta das bengalas, esperando o momento em que falharão e o cego trombará com o obstáculo. Sem me envergonhar desse pequeno sadismo, imagino que todos olhem esperando a mesma coisa. Um deles esbarra de frente com uma parede, só então me sinto constrangida.
Mulheres. Jalecos. Cabelos. Batons. Sapatoc... toc... toc...
Aquela foi uma noite de sábado. Pendurado no retrovisor, um esqueletinho de plástico prateado balança seus ossos. O taxista tem uma morenice quase índia. Junto essas duas referências e ensaio perguntar se ele é mexicano. Mas me calo. Na ponta oposta do banco, o homem dorme. Seu corpo é grande e macio. Não sinto, mas sei que seu cheiro é leve e claro, como sua pele chuviscada de sardas. Insisto comigo mesma que deveria falar com o taxista. Mas ele não é simpático e fico tímida.
Hoje, vejo os carros. Preto, prata, preto, prata, preto, prata. Por que tantos carros são pintados apenas com essas duas cores? À minha esquerda, um convento. Em alguma memória de infância, me dizem que nesse convento se produzem hóstias. Em alguma lembrança da juventude, lembro da amiga que dizia comer sobras de hóstias, que sua mãe ganhava das freiras, enquanto assistia à televisão. Rebarba, a palavra exata.
Até quando serei eu? Há um cansaço em ser para sempre a mesma pessoa. Tenho preguiça da eternidade.
Cobrindo o morro, muitas casas inacabadas se põem uma ao lado da outra e da outra e da outra. Aqui e ali, algumas - bem poucas - recebem o luxo de uma mão de tinta. Azul, amarelo, verde. Lembram-me uma prateleira de farmácia, lotada de pequenas caixas de remédio.
No livro italiano, o autor descrevia uma cena onde um casal passeia por uma praia. Não muito longe, se avistam pinheiros. Fiquei atenta às personagens, incapaz de visualizar o cenário. Pinheiros numa praia me parecem um absurdo excessivo para minha experiência tropical. Mergulho no quente escuro e é em um desses abismos de água que o homem me encontra.
O sol apenas insinua sua chegada quando ele acorda. Agora, quem dorme sou eu. Desperto quando sua mão alegre toca o couro elástico e escorregadio do meu quadril, ainda molhado e salgado de mar. As sereias, fora da água, pedem colo. Minha intolerância em pedir ajuda é tanta que, sem nem abrir ainda os olhos, desenho para mim longas pernas morenas, para que possa escapar quando quiser.
O que não posso é ser só mulher. Enfio ávidas mãos dentro de mim e trago o que primeiro encontro. Enquanto a mão alegre me passeia, minha boca se abre e não me surpreendo com os miados. Aninho-me no peito do homem e ronrono. Seu peito é grande e macio. E seu cheiro é leve e claro como sua pele chuviscada de sardas. Amanheço num domingo de primavera.
Por aqui passam vários cegos. Um, dois, três... Cada bengala é um terceiro olho. Ou talvez o único. De longe, atento para a ponta das bengalas, esperando o momento em que falharão e o cego trombará com o obstáculo. Sem me envergonhar desse pequeno sadismo, imagino que todos olhem esperando a mesma coisa. Um deles esbarra de frente com uma parede, só então me sinto constrangida.
Mulheres. Jalecos. Cabelos. Batons. Sapatoc... toc... toc...
Aquela foi uma noite de sábado. Pendurado no retrovisor, um esqueletinho de plástico prateado balança seus ossos. O taxista tem uma morenice quase índia. Junto essas duas referências e ensaio perguntar se ele é mexicano. Mas me calo. Na ponta oposta do banco, o homem dorme. Seu corpo é grande e macio. Não sinto, mas sei que seu cheiro é leve e claro, como sua pele chuviscada de sardas. Insisto comigo mesma que deveria falar com o taxista. Mas ele não é simpático e fico tímida.
Hoje, vejo os carros. Preto, prata, preto, prata, preto, prata. Por que tantos carros são pintados apenas com essas duas cores? À minha esquerda, um convento. Em alguma memória de infância, me dizem que nesse convento se produzem hóstias. Em alguma lembrança da juventude, lembro da amiga que dizia comer sobras de hóstias, que sua mãe ganhava das freiras, enquanto assistia à televisão. Rebarba, a palavra exata.
Até quando serei eu? Há um cansaço em ser para sempre a mesma pessoa. Tenho preguiça da eternidade.
Cobrindo o morro, muitas casas inacabadas se põem uma ao lado da outra e da outra e da outra. Aqui e ali, algumas - bem poucas - recebem o luxo de uma mão de tinta. Azul, amarelo, verde. Lembram-me uma prateleira de farmácia, lotada de pequenas caixas de remédio.
No livro italiano, o autor descrevia uma cena onde um casal passeia por uma praia. Não muito longe, se avistam pinheiros. Fiquei atenta às personagens, incapaz de visualizar o cenário. Pinheiros numa praia me parecem um absurdo excessivo para minha experiência tropical. Mergulho no quente escuro e é em um desses abismos de água que o homem me encontra.
O sol apenas insinua sua chegada quando ele acorda. Agora, quem dorme sou eu. Desperto quando sua mão alegre toca o couro elástico e escorregadio do meu quadril, ainda molhado e salgado de mar. As sereias, fora da água, pedem colo. Minha intolerância em pedir ajuda é tanta que, sem nem abrir ainda os olhos, desenho para mim longas pernas morenas, para que possa escapar quando quiser.
O que não posso é ser só mulher. Enfio ávidas mãos dentro de mim e trago o que primeiro encontro. Enquanto a mão alegre me passeia, minha boca se abre e não me surpreendo com os miados. Aninho-me no peito do homem e ronrono. Seu peito é grande e macio. E seu cheiro é leve e claro como sua pele chuviscada de sardas. Amanheço num domingo de primavera.
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