sexta-feira, 12 de novembro de 2010

A Sala da Luz Vermelha

Era uma vez um lugar quase mágico, onde imagens eram reveladas. Para chegar lá, passava-se por uma espécie de portal, abertura através de negras cortinas, muitas vezes em zigue e zague. Lá dentro, tudo era igual e, ao mesmo tempo, diferente. Sabíamos que ainda estávamos neste mundo, mas não podíamos vê-lo como tal. Para começar, a luz. No espaço escuro, a única luminosidade era vermelha, como uma lua colorada numa noite quente. E os cheiros! Eram fortes, marcantes, diferentes dos cheiros que nossos narizes encontram nas ruas: muitas pessoas achariam repugnantes os odores químicos que tomavam o lugar. Como deve ser o inferno, repleto de enxofre. Mas, como explicar? Quem entrava ali por vontade própria, já na primeira vez se sentia inebriado com aquele cheiro. Hoje, tantos anos depois, ainda tenho guardado em algum ponto prazeroso de minha memória os cheiros deste lugar. Uma mistura perfumada de produtos que se diluíam em água, nas proporções bem calculadas, para que as imagens aflorassem no tempo certo.
No local mais sagrado deste lugar, um altar invertido, estava um equipamento onde um pedaço de filme negativo era introduzido e uma luz – a única que não era vermelha- ampliava sobre um pedaço de papel fotossensível um desenho pouco compreensível para os intrusos. E o papel era mergulhado em bandejas recheadas de líquidos. Então, magicamente, ia surgindo pouco a pouco uma imagem positiva. Ah, a primeira vez que uma pessoa vê isto acontecer é incrível! Do fundo da água, em pontos escuros que vão se transformando em linhas e as linhas em sorrisos e olhares e composições... Na verdade, era sempre emocionante, fosse a primeira, a décima ou a milésima vez. E lá se iam uma hora, duas, três, oito horas esquecidas do mundo real... Eram sempre horas de magia. Eu disse magia? Não, este processo era pura técnica.
O tempo exato de a luz queimar o papel, o tempo exato no revelador, o tempo exato de interromper... Tudo calculado segundo a segundo: um relógio preciso era presença obrigatória. Se possível, um temporizador. Claro, muitas vezes as coisas não eram como se esperava. A pessoa batia os olhos numa cena, mas errava a exposição. No negativo, memória e registro não se bicavam. Hoje, um pouco de habilidade em programas de imagem resolvem bem este problema. Mas, lá na terra da luz vermelha, a habilidade morava no jeitinho de conduzir a luz sobre o papel. Com os dedos quase fechados, formando um túnel para a luz passar, como um jato direcionado, queimava-se as partes que deveriam ser queimadas. E poupavam-se as que deveriam ser poupadas. Ou se movia a mão escondendo um ou outro pedaço do papel. Sempre em movimento, para não ficarem marcas. Quantas imagens não foram salvas com estas máscaras! Mas não pense que era fácil. Era preciso ter experiência e fazer muitos testes até chegar ao ponto certo. Era preciso, acima de tudo, uma boa dose de sensibilidade e intuição para chegar lá. Também existiam os negativos com pouco contraste... Ah, é só ir clicando nas setinhas da esquerda onde se lê contraste, né? Não, meu filho. A sala da luz vermelha, apesar do nome parecido, não é o Lightroom. Era preciso calcular abertura e tempo de exposição, tempo de revelador e interruptor. Era preciso fazer tudo de novo. Também se podiam usar os filtros de contraste. Fosse como fosse, haja experiência, paciência e sensibilidade para chegar ao resultado ideal.
A fotografia digital tornou o processo completo – da captação à ampliação- muito mais acessível. E isto não significa que qualquer um consegue bons resultados. Experiência, sensibilidade, paciência e outras habilidades ainda determinam quem é de fato bom profissional. Mas o que me pergunto é onde ainda existem estes lugares incríveis, onde um sujeito de bem podia passar dias tão felizes na companhia das imagens? Faculdades? Laboratórios comerciais? No quartinho dos fundos de algum fotógrafo à moda antiga? Quem ainda tem um sagrado ampliador P&B, bandejas para a química e aquela peculiar lampadinha vermelha?
Não faço coro aos saudosistas. Mas sinto pena pelos mais jovens que já debutaram em câmeras digitais e não tiveram a oportunidade de aprender um pouco mais sobre o trato com a luz. A refotografia: quando fotografia era novamente feita, desta vez positiva e no papel. Ah, a luz vermelha, a magia das imagens surgindo... E, claro, o odor delicioso que só a mistura de revelador, fixador e interruptor podem produzir. Este odor grudento que ainda sinto cada vez que penso num laboratório de revelação P&B. Oras, quer saber? Eu sou, sim, uma saudosista.
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Publicado originalmente no Fotocolagem. http://fotocolagem.blogspot.com/

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