quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Dicionário

“O amor aos dicionários, para o sérvio Milorad Pavic, autor de romances-enciclopédias, é um traço infantil no caráter de um homem adulto”. É o que diz Chico Buarque no prefácio da reedição do Dicionário Analógico da Língua Portuguesa, de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo ( http://www.lexikon.com.br/dicionario_analogico/dicionarioanalogico.html ).Um dicionário para ser usado especialmente naqueles momentos em que, como me explicou um amigo, “você sabe o que quer dizer, mas não encontra a palavra perfeita ou satisfatória”.
Lendo isso, lembrei que era louca por dicionários quando era criança. Em casa tínhamos um bem grande, de capa toda preta, herança do avô José, o corretíssimo pai de meu pai. O que dá uma ideia de sua velhice, já que meu avô nasceu em algum ano do século XIX. A ordem familiar era de que ele não deveria passear em minhas mãos. Era um livro importante, sério. Mas como se pode negar a uma criança o direito de aprender? Então eu podia pegá-lo, sempre com rigoroso cuidado.
Claro que em pouco tempo ninguém mais me vigiava e, quando sozinha, escorregava o catatau para fora de seu lugar entre os outros livros e gastava muito tempo me deliciando com esse prazer infantil.
Foi lá que aprendi que masturbação é uma forma de ter prazer físico sozinho. E desconfiei, imediatamente, do que se tratava (não dizia nada sobre o uso das mãos, por isso sempre acho estranho quando alguém diz que masturbou o outro. Como assim? Não era pra ser sozinho, cazzo?). Depois de tanta escorregadas, começou a se desfazer. A encadernação foi ficando bamba, os cantos da capa dura amassados por batidas, as páginas cada vez mais amareladas.
Mas dureza mesma foi o dia em que meu irmão mais velho me declarou, eu já adolescente, para meu espanto e decepção, que aquele não era um bom dicionário. Esbarrei no susto. O que é isso? Um dicionário que não é bom? Então ele me explicou, do seu jeito sempre... Sempre o que mesmo? Pois é, estou num daqueles momentos em que “você sabe o que quer dizer, mas não encontra a palavra perfeita ou satisfatória”. Explicou do seu jeito de sempre de irmão mais velho, que seja, que ele estava desatualizado, que os dicionários mais novos tinham mais verbetes, com explicações mais complexas.
Daí em diante, parte do encanto do dicionário velho da capa preta se perdeu. Mas apenas porque soube que ele já não era tão confiável como eu supunha – e eu o supunha a coisa mais confiável que existia no mundo, oras!- mas continuou sendo o livro mais cobiçado da estante da minha mãe. Que, cá entre nós, não tinha mesmo nada que preste.
E agora, três décadas depois, me pego aqui um tanto besta pensando por que, afinal, esse dicionário ainda está lá. A estante já é outra, os livros são outros, a necessidade é outra. No meio de um monte de tranqueiras, quinquilharias, coiseiras e, em minha opinião, lixo a ser reciclado, o pobre se esconde.
Enfim, decidi enquanto escrevia este textinho: vou furtá-lo. Num dia qualquer, em que minha mãe se encontre distraída, vou transferi-lo para o meu armário de livros, onde poderá ficar na companhia agradável de Victor Hugo, Jorge Amado e João, o Rosa. Num dia qualquer, quando estiver cansada de viver do lado de fora, vou pegá-lo novamente e caminhar na sua luz amarela, respirar seu cheiro de livro muito velho. Prazeres de criança.