quarta-feira, 13 de março de 2013

Hoje é Carnaval


Dizem que a idade dos cães se calcula assim: cada ano que eles vivem, equivalem a oito anos da vida de um humano. Cláudia começou a achar que sua vida sexual era uma vida de cão. Um ano sem sexo era para ela quase uma década de sofrimento!  Ela já estava chegando a um ano e meio.
A verdade é que o seu último casamento (o terceiro!) foi realmente um terremoto: ainda estava revirando os escombros em busca dos restos mortais de sua autoestima. Sabia que precisaria de muito tempo e paciência para se sentir novamente disposta a um novo envolvimento. Sentia-se como uma loja de departamentos depois da liquidação de natal. Abaixou as portas e pendurou a faixa: “fechada para balanço”. Fechada para envolvimentos, acabou também se fechando para sexo.
Não que faltassem opções. Tinha aquele amigo que morava no interior, que sempre dizia que era só chamar. E o outro, que cismou que ela estava a fim dele. Sem falar no coroa bonitão que sentia por ela uma forte “atração espiritual” (sei...). E mais alguns, que nunca disseram nada, mas que era só uma questão de dar espaço.
Mas o que fazer se ela não sentia atração por nenhum deles? Não bastasse seu olhar exigente de fotógrafa, tinha uma personalidade que os amigos classificavam como excêntrica, cheia de gostos e desgostos. Melhor não fazer do que fazer sem vontade. Mas quando se queixou pela milionésima vez com sua melhor amiga, ouviu uma bronca. A amiga era alguns anos mais velha e sempre foi uma referência de bom senso quando o assunto era sexo. E o pior - sempre há um pior - era psicóloga. E disse: 
- Você está louca?
- ...
- Isso vai te deixar doente.
- ...
- Isso é doença!
Voltou pra casa abalada, disposta a resolver. Porque não há nada de mal em uma pessoa optar pelo celibato. Mas há tudo de mal quando essa pessoa se sente péssima, a ponto de chorar! Decidiu que seria no sábado, quando se encontraria à tarde com alguns amigos num bloco de carnaval. Acordou decidida, repetindo o mantra “àgua morro abaixo, fogo morro acima e mulher quando quer dar, ninguém segura”. Preparou-se para a saída como se tivesse um encontro marcado com alguém, com direito a depilação, creme hidratante no corpo todo e outros detalhezinhos que toda mulher conhece.
E a multidão ao redor do trio elétrico era farta em moços bonitos. Chegou a pensar que era alguma alteração sensorial provocada por seu período fértil, mas suas amigas confirmaram. Choveu, fez sol, choveu de novo, anoiteceu. O trio elétrico saiu, os amigos começavam a pensar em ir a outro lugar e ela ainda sozinha, repetindo para si mesma “água morro abaixo...”.
Fazia quarenta e cinco dias que chovia sem parar em São Paulo, mais água do que enfrentou Noé. Mas os paulistanos cantavam alegres “tomara que chova / dez dias sem parar”. Foi logo depois que ouviu uma voz de homem falar alguma coisa a respeito de Guimarães Rosa. E alguém que cita Guimarães Rosa no meio de um bloco de carnaval, merece uma olhada. Sem parar de andar, virou lentamente a cabeça para ver quem estava atrás dela. Três rapazes.
A voz roseana era do que estava na ponta esquerda. E era gato! “Ei, você aí / me dá um dinheiro aí...”. Poucos minutos depois, olhou de novo para confirmar. Era gato mesmo. “Eu mato / eu mato / quem pegou minha cueca / pra fazer pano de prato”. Quando olhou pela terceira vez (gato, gato, gato!), já achou que estava abusando.
O trio elétrico já estava chegando de volta ao ponto de partida e os foliões já se dispersavam. Então ouviu uma voz lhe dizendo alguma coisa qualquer sobre a música. Aquela voz que para ela já era quase a voz de um anjo. Era ele. E era simpático. E era gente boa. E era bem humorado. E era, graças a Deus, objetivo. Depois de uma conversa ligeira - em que ficou declarado para os devidos fins que estavam ambos solteiros- se aproximou e a beijou.
Chamava-se Mateus e era de um cidadinha no interior paulista, o que lhe deixou um delicioso sotaque e a paixão por um time de futebol com nome bizarro. Estava em São Paulo desde que terminou a faculdade há dois anos e tinha recém completado 27 anos. Ou seja: nove a menos que ela. Ainda era cedo para encerrar uma noitada paulistana, mas já estavam ali há tempo suficiente de pegar chuva, sol, chuva, sol, chuva, lua. E ele sugeriu que fossem para casa dele.
E agora, Josefa? É claro que ela queria ir. Acordou nesse dia só para terminá-lo na cama de alguém. E achou alguém bonito, simpático, inteligente, que até citava Guimarães Rosa! E já fazia muito tempo que aprendeu a por de lado essa bobagem de que mulher não pode dar na primeira vez. Para ser exata, desde o dia em que contou para a amiga-mais-velha-sensata-psicóloga que tinha beijado alguém da faculdade e a amiga disse que ela já não era mais uma menininha para ficar de beijinho com um homem. Dizer não por quê? Mas ela não conhecia o rapaz, nem tinha certeza se seu nome era verdadeiro. E se fosse um psicopata-serial-quíler-canibal-torturador-de-mulheres-mais-velhas? Bobagem. Sua intuição era uma bússola poderosa, teria indicado se houvesse tanto perigo. Mas o fato é que essa hesitação durou alguns segundos. Tempo suficiente para que ele sacasse que estava rolando um conflito típico feminino e resolvesse a situação brilhantemente. Conversou mais um pouco, foi comprar uma garrafa de água e disse, com muita calma, que não era porque iam para a casa dele que precisavam transar. Se ela não quisesse, não transariam. E para arrematar usou uma frase que abriu mais portas do que o velhíssimo “abra-te sésamo”: “acho que nós temos idade para resolver isso”. Se um menino de 27 aninhos se achava adulto para decidir por si mesmo com quem, quando e como faz sexo, que dirá ela. No fundo, foi só o velho truque de dar liberdade para poder prender. Mas os argumentos eram muito válidos e em meia hora estavam em um apartamento na Vila Mariana. 
Se fôssemos olhar pelo lado mau, o quarto dele era uma espécie de abatedouro. Luminária japonesa no teto, velas decorativas sobre a cômoda, uma deliciosa seleção de música brasileira tocando durante horas, uma enorme cama de casal e, pasmem!, até um gel lubrificante ao alcance da mão. Olhando pelo lado bom, era um quarto romântico e sensual. Luminária japonesa no teto, velas decorativas sobre a cômoda, uma deliciosa seleção de música brasileira tocando durante horas e uma enorme cama de casal (deixemos o gel lubrificante pra lá).
Em pé próximo à cama, ele tirou a camisa. Debaixo dela estava escondido um peito lindo, largo, forte, com pelos claros e macios. E deixou a calça escorregar devagar. Embaixo dela, uma bunda linda. Na verdade, Cláudia nunca ligou muito para essa parte da anatomia masculina, achava a parte superior do corpo mais atrativa. Mas esse menino realmente tinha uma bunda espetacular. Lembrou na hora de uma amiga sua, obcecada por bundas (ficou só imaginando ligar pra ela no dia seguinte e contar: “Cris! Fiquei com um cara ontem e pensei tanto em você!”). Então ele a empurrou levemente para cama.  Só quando ela já estava deitada ele terminou de tirar seu vestido lentamente. E não disse nem a nem bê, mas sua respiração se aprofundou um pouco, como um leve suspiro, quando viu seu corpo nu. Como explicar essa sensação? Que palavras escolher para tornar compreensível o prazer que ela sentiu com esse suspiro de admiração que ele soltou ao ver sua cintura fina e seus quadris bem desenhados sobre sua larga cama? Qual frase dá a noção exata do tesão que ela teve com o tesão que ele demonstrou? Há tanto tempo sozinha, tanto tempo se sentindo desperdiçada, mal amada e, de repente, um menino lindo, dez anos mais jovem, suspira com a visão de seu corpo.
Era a hora de conferir o que é que essa molecada criada na frente do computador andou aprendendo no “dáblio-dáblio-dáblio-porn-tube-ponto-com”. O beijo, quesito que em sexo equivale à comissão de frente de uma escola de samba, já tinha merecido 10. E o modo como vinha conduzindo a situação era impecável (evolução: 10). Se esse rapaz pudesse ser descrito sexualmente em uma só palavra, seria “técnico”. Ele sabia exatamente onde, como e quando tocar. Mas o que o tornou inesquecível foi seu jeito de fazer sexo oral, um jeito que só pode ter aprendido num filme pornô de lésbicas. Porque um homem não pensaria naquilo sozinho. Em 20 anos de vida sexual ativa, era a primeira vez que alguém fazia aquilo
Não há necessidade de muitos detalhes, para começar basta dizer que ele usou a boca e mão direita ao mesmo tempo. Até aí, nada além do básico, apesar de alguns homens não perceberem que isso é básico. Mas quando ela já estava bastante estimulada (leia-se “en-lou-que-ci-da”), ele começou, com a outra mão, a dar leves tapinhas na base do clitóris, sempre coordenando as duas mãos e a língua no mesmo ritmo e com a pressão exata. Era tudo ao mesmo tempo agora num só lugar (harmonia: 10!).  Depois disso, o que vier vem bem: bateria, alegoria, samba enredo, primeiro casal de mestre-sala e porta-bandeira: nessa noite choveram mais notas 10 do que água.
Quando o dia clareou e ela pode ver suas costas muito claras, cheias de pintas marrons como um sorvete de flocos, eles ainda estavam abraçados rindo juntos.  Um riso que perdurou por vários dias no rosto de Cláudia, como se fosse um carnaval baiano, daqueles que começam no reveiôm e acabam no São João. 
A verdade é que se ela soubesse que seu desjejum seria tão bom, teria esperado com serenidade budista, sem nenhuma queixa, sem nenhuma lágrima. Porque a espera valeu à pena.


N.A. antes que alguém diga que, por conta da idade, ela deveria ir para a ala das baianas, Claudinha avisa: fez bonito como Rainha da Bateria! 

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Rádio-Relógio



03h:00 Depois do sexo, ele pula da cama: põe roupa, muda música, acende cigarro, abre cerveja.Ela abandona-se na cama para sempre.

03h:30 Ela quer dormir. Ele quer assistir a um filme: “põe o DVD. Só você sabe”. Meio nua, atende. Depois se encolhe sobre o travesseiro.

05h:00 Ele quer assistir a outro filme.“divide comigo” “não” “por favor” “não” “ah, vem!” “não! quero dormir!” “posso deitar com você...?”

07h:00 Ele, enfim, desiste dos filmes,das músicas, do amor. Dorme. Então ela vira para um lado. E para o outro. Insônia.

10h:00 Ela precisa ir. Ele acorda sem acordar, recebe um beijo, vira para o lado, ronca. Ela se vê linda no espelho. Deixa um bilhete. Vai. 

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Amor Perfeito

Narciso,

eu te glicínio muito, sabia?

Quando vejos seus lírios e gerânios, quando abre suas ninféias... Quando você vem, com essa sua dipladênia... Quando a gente se amarilis. Eu me margarido toda! Às vezes você é tão girassol, que chega a parecer tulipa. Outras vezes você é dália, outras helicônea. E outras, ainda – ah,outras!- você é só antúrio. Deixa um jacinto na boca-de-leão.

Tentei resistir, mas quando vi, já era malva. Orquideei-me numa dama-da-noite. É, foi rosa. Mas se miosótis petúnia, rodáquea gloxícina, né? O importante é que você me violeta de prímula, mesmo quando está cravo. Eu: sempre-viva!

Mas chega dessa ipoméia e voltemos ao lótus: eu só queria dizer que te glicínio muito.

Beijo,

Maria-sem-vergonha

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Dicionário

“O amor aos dicionários, para o sérvio Milorad Pavic, autor de romances-enciclopédias, é um traço infantil no caráter de um homem adulto”. É o que diz Chico Buarque no prefácio da reedição do Dicionário Analógico da Língua Portuguesa, de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo ( http://www.lexikon.com.br/dicionario_analogico/dicionarioanalogico.html ).Um dicionário para ser usado especialmente naqueles momentos em que, como me explicou um amigo, “você sabe o que quer dizer, mas não encontra a palavra perfeita ou satisfatória”.
Lendo isso, lembrei que era louca por dicionários quando era criança. Em casa tínhamos um bem grande, de capa toda preta, herança do avô José, o corretíssimo pai de meu pai. O que dá uma ideia de sua velhice, já que meu avô nasceu em algum ano do século XIX. A ordem familiar era de que ele não deveria passear em minhas mãos. Era um livro importante, sério. Mas como se pode negar a uma criança o direito de aprender? Então eu podia pegá-lo, sempre com rigoroso cuidado.
Claro que em pouco tempo ninguém mais me vigiava e, quando sozinha, escorregava o catatau para fora de seu lugar entre os outros livros e gastava muito tempo me deliciando com esse prazer infantil.
Foi lá que aprendi que masturbação é uma forma de ter prazer físico sozinho. E desconfiei, imediatamente, do que se tratava (não dizia nada sobre o uso das mãos, por isso sempre acho estranho quando alguém diz que masturbou o outro. Como assim? Não era pra ser sozinho, cazzo?). Depois de tanta escorregadas, começou a se desfazer. A encadernação foi ficando bamba, os cantos da capa dura amassados por batidas, as páginas cada vez mais amareladas.
Mas dureza mesma foi o dia em que meu irmão mais velho me declarou, eu já adolescente, para meu espanto e decepção, que aquele não era um bom dicionário. Esbarrei no susto. O que é isso? Um dicionário que não é bom? Então ele me explicou, do seu jeito sempre... Sempre o que mesmo? Pois é, estou num daqueles momentos em que “você sabe o que quer dizer, mas não encontra a palavra perfeita ou satisfatória”. Explicou do seu jeito de sempre de irmão mais velho, que seja, que ele estava desatualizado, que os dicionários mais novos tinham mais verbetes, com explicações mais complexas.
Daí em diante, parte do encanto do dicionário velho da capa preta se perdeu. Mas apenas porque soube que ele já não era tão confiável como eu supunha – e eu o supunha a coisa mais confiável que existia no mundo, oras!- mas continuou sendo o livro mais cobiçado da estante da minha mãe. Que, cá entre nós, não tinha mesmo nada que preste.
E agora, três décadas depois, me pego aqui um tanto besta pensando por que, afinal, esse dicionário ainda está lá. A estante já é outra, os livros são outros, a necessidade é outra. No meio de um monte de tranqueiras, quinquilharias, coiseiras e, em minha opinião, lixo a ser reciclado, o pobre se esconde.
Enfim, decidi enquanto escrevia este textinho: vou furtá-lo. Num dia qualquer, em que minha mãe se encontre distraída, vou transferi-lo para o meu armário de livros, onde poderá ficar na companhia agradável de Victor Hugo, Jorge Amado e João, o Rosa. Num dia qualquer, quando estiver cansada de viver do lado de fora, vou pegá-lo novamente e caminhar na sua luz amarela, respirar seu cheiro de livro muito velho. Prazeres de criança.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Bagagem

Uma roupa de frio. Uma calcinha rendada. Rímel, lápis, batom, esmalte. Escova de dentes, pente, remédios. Camisinhas.
Levo um fígado limpo, desabituado de álcool. Um tanto de insônia, se faz necessário. Para o pulmão, uma dose extra de tolerância ao tabaco.
Não posso deixar de levar uma muda de voz, ainda que desafinada, para em dueto cantar ‘Vida Noturna’, ou outras pérolas de Aldir.
E um par de ouvidos bem atentos, para a hora da leitura. Mãos, levo várias: há corpo demais para passear as pontas dos dedos. Sorrisos às pencas, que usarei todos. E olhos de olhar nos verdes incompletos de outros olhos.
Poesia eu nunca sei: levo da minha ou uso a que tanto sobra por lá? (Mas é tão leve, oras, não custa levar).
Já ciúme eu não levo, que é peso demais, eu não vou aguentar. Também deixo de fora algumas más histórias, mal humores, má vontade (esta eu nem tenho para levar). Ignorância, porém, não posso deixar: sou muito apegada a ela.
Aperto tudo isto no fundo da mala para sobrar mais espaço: há muita vontade de conhecer, que eu preciso levar. E um enorme desejo de estar junto que, de tão grande, preciso dobrar.
Embalo também um tantinho de espanto, um bocadinho de medo, um tiquinho de dúvida. Mas deixo bem embrulhados para que não se derramem e manchem as outras coisas.
No espaço que sobra – e bem sobra porque a mala é grande- coloco desejo. Mas, ora, veja só: não é que no começo da semana, era de menor tamanho? Como cresce tanto, em tão poucos dias? Faço um esforço para que caiba todo. Senão, alguma coisa vou ter que tirar! Desejo só vai inteiro, não se pode cortar. Aperto, empurro, desarrumo, arranjo, desfaço, refaço. Ufa! Coube.
Na hora de sair, ainda me lembro do pouco de encanto, que eu queria ofertar. Não cabe na mala. E solto, posso perder...
Me olho no espelho e vejo: tenho sapatos adequados, de saltos bem altos para alcançar o beijo. E roupas práticas, fáceis de tirar. Também um colar, para me proteger. E um anel, que tenciono esquecer.
Então, por cima de tudo, visto o encanto.
E vou.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

O que tem para comer?

No blog do Pedro Martinelli ( http://www.pedromartinelli.com.br/blog ), li um texto em que ele falava de uma jovem repórter que, em uma viagem, queria comer alguma coisa mais leve, com uma saladinha, um iogurte talvez . Ele foi falando e soltando uma ironia levezinha por trás da estória. Cheguei a ver, por trás de sua barba, o sorrisinho subindo para o lado esquerdo do rosto. E eu não pude deixar de rir da ingenuidade da moça que, como ele disse, era “novata no trecho”. Jornalista viajando lá pode escolher comida? Pode não.

Fiquei pensando se esta moça estivesse em algumas situações que vivi. Não que eu sempre coma mal quando viajo a trabalho ( tem um hotelzinho em Belém do Pará, de nome começado com Z - Zogbi?Zíngara? - que serve um peixe incrível e que tem de sobremesa um divino creme de cupuaçu, para se comer ajoelhado. Jesus, Maria, José!). Mas, enfim, eu estava falando dos perrengues.

Os piores passei em Minas Gerais. Justo lá, onde está a minha comida preferida! Lembro especialmente de uma viagem pelo Vale do Jequitinhonha, na companhia de uma repórter e de um fotógrafo, fazendo uma matéria sobre cerâmica. Indo de uma cidade a outra acabamos chegando à hora do almoço numa beira de estrada. A cidade mais próxima, onde havia de ter algo de bom, nos afastaria demais do rumo. O jeito foi parar num barzinho. No balcão, agasalhado por uma estufa de vidro, um cozido de mandioca. Eu não vi, mas quem viu me disse: estava “verde”. Mas não é que eu carregava nas minhas tralhas um teco de queijo, comprado em algum sítio do caminho, que eu vinha comendo aos pouquinhos? Almoço para três num dia cheio de trabalho: meio queijo minas e guaraná Antártica. No dia seguinte, já chegando nos finalmentes do Jequitinhonha, caminho para Santana do Araçuaí, foi pior.

Na única portinha aberta, num sem fim de estrada, esbarramos. Era um lugarzinho dos menores, pouco iluminado e com cara de mal limpo. No balcão, algumas coxinhas. Do lado de lá do balcão, um senhor olhou meio torto e soltou, numa voz desanimadora: “São de ontem. Não devem estar boas...”
Uai, se o dono diz, como discordar? Tem alguma outra coisa pra comer? Tinha: paçoquinha. Almoço para três nm dia cheio de trabalho: paçoquinha e coca-cola.

Também em Minas, no Parque Nacional “Grande Sertão: Veredas”, difícil foi escapar da paçoca de carne seca da dona Nica. Passávamos pela casinha de adobe e dona Nica gentil nos convidava. Eu me esquivava daqui, me esquivava dali. Até que, numa noite, já ficando chata a recusa de tão insistente, não houve como escapar. E ela trouxe uma tigelinha recheada e uma garrafa de café.
Não que haja algo de errado com paçoca de carne seca: é um prato tradicional e saboroso. Mas, não bastasse eu não ser lá muito chegada em carne seca, já estava há dias vendo as mantas de carne penduradas nas portas das casas, de frente para as ruas. Passa boi, passa boiada, cavalo, gente e cachorro... a carne ali, como roupa no quarador, secando ao sol roseano, banhando-se de poeira vermelha do sertão. Não dava para encarar. Protegida do escuro da casinha, iluminada por uma fraca lamparina, eu apenas fingia que comia. Batia a colher na tigela para fazer barulho, levava-a próxima à boca e devolvia ao seu lugar. Mas o fotógrafo que estava comigo, João Correia Filho, era do tipo avestruz. Além de bom de garfo, gostava do prato. Como a tigelinha era para nós dois, eu contava que ele comeria a parte dele e a minha também. E continuei com meu teatrinho.
Nem o café eu tomei todo, que era ruim demais da conta. Só mais tarde, já afastados dos ouvidos de dona Nica, que apesar de mal cozinheira era um amor de pessoa, confessei o meu embuste. E por pouco não apanhei: o “bom de garfo”, por mais bom de garfo que fosse, também se lembrou das carnes penduradas. E foi com esforço que comeu, tentando entender porque é que não acabava nunca a bendita paçoca!

Mas eu levei tudo isto numa boa. Perrengue mesmo passei no Pará. Em Afuá, no Marajó, simplesmente não se achava café. Sim, café, este líquido precioso e indispensável para sobrevivência humana. Não que os afuaenses não tomassem café. Eles só não vendiam. Na padaria: acabou. Mas são nove horas da manhã! Mas acabou. Outra padaria: ah, aqui só temos pão. Era final de tarde e a vida já estava se tornando insuportável quando, enfim, numa lanchonete caseira, a dona me disse:
- Ter, não tem. Mas, se você quiser, posso fazer.
Ufa! Sorri agradecida, lembrando como é bom quando estamos fora de casa e conseguimos não passar por privações.

Por estas e outras, fico pensando na repórter, parceira de viagem do Pedro Martinelli. Iogurte? Saladinha? Minha filha, dieta se faz em casa. Na rua, se encontrar comida, agradeça e peça a Nossa Senhora do Desterro que te proteja da salmonela e companhia. E bom apetite!

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Juan Rulfo




Era um bar instalado nos fundos de um estacionamento, num imóvel meio caindo e mobiliário mais descombinado que de república estudantil. Mas com muitas opções de cervejas de nomes impronunciáveis, aprisionadas em garrafas pequenas e preços grandes. Enfim, um pouco daquele pedantismo paulistano, que oscila entre pretensão e charme. Para ficar ainda mais charmoso – e pretensioso – só tocava jazz.

E eu nem ouvia a música, nem bebia cerveja: estava ocupada demais com o pesado embrulho de presente em minhas mãos. Era óbvio que era um livro. Mas qual? Eu intencionalmente não abria. Queria prolongar aquela sensação gostosa de ansiedade, antes que a curiosidade falasse mais alto.

Quando abri, abri devagarinho. Na parte de baixo da capa, vislumbrei as palavras Juan Rulfo. Fechei correndo. Juan Rulfo? O livro “100 fotografias”, de Juan Rulfo? Precisei de alguns segundos antes de ter coragem de abrir novamente e confirmar.

Uma semana antes eu tinha lido um texto de outro Juan, o Esteves, sobre esse livro. E o desejei com tanta força que nem ousei desejá-lo. Sabe como é? Quando uma coisa é tão especial que a gente humildemente nem se atreve a querer? Foi assim. Só que eu mandei esse texto para uma pessoa muito querida (juro que não foi uma indireta). Que dias depois entrou numa livraria para comprar um presente de aniversário para um amigo. E o livro estava lá, todo exibido. Agora está aqui, ora nas minhas mãos, ora na mesinha da sala (Helena, se você encostar um dedo nesse livro, se amassar, sujar ou qualquer coisa assim, o bicho vai pegar!).

Eu e o Juan Rulfo fomos apresentados há pouco mais de um ano. Um ano e dois meses, para ser exata. Quero dizer, ele foi apresentado a mim, porque duvido muito que ele saiba quem eu sou. Foi um presente também, um pacotinho que chegou pelo correio, enviado de Florianópolis por um amigo querido com quem compartilho meu apego por livros (a misantropia é uma bobagem: o que mais vale nessa vida é a presença de pessoas queridas). Mas não era um livro de fotos, era o romance “Pedro Páramo”. E eu nem sabia – nem havia nenhum comentário no livro, nem meu amigo me disse – que o autor era também fotógrafo. Foi pesquisando sua obra literária que fiquei sabendo, com o comentário contundente de Susan Sontag: “É o melhor fotógrafo que conheci na América Latina”.

Se ela disse, quem sou eu para discordar? Foi o meu fotógrafo do ano. Comecei a pesquisar imagens e textos sobre ele. A última coisa que vi foi justamente a crítica de Juan Esteves, publicado no blog do Paraty em Foco, sobre o livro que foi lançado em dezembro de 2010 pela Cosac Naify e é uma homenagem ao fotógrafo. São, obviamente, cem fotografias, com praticamente todas as temáticas que ele abordou (de fora ficaram apenas as fotos de dança) e que fazem uma espécie de resumo de seu trabalho fotográfico.

Carlos Juan Nepomuceno Pérez Rulfo Vizcaíno nasceu no México em 1917 e passou toda a infância e adolescência no interior do país. E foi nesse o espaço em que viveram também seus personagens, os criados pelas palavras e os criados pelas imagens. Apesar de ser considerado por muitos críticos como o maior escritor mexicano e um dos maiores do continente, Rulfo assumia a autoria de apenas dois livros: os contos de “Chão em Chamas” e o romance “Pedro Páramo”, publicados em 1953 e 55. Na década de 60, “O Galo de Ouro”, com textos que ele escreveu para cinema, foi publicado por insistência de seu amigo Vicente Rojo. Já o fotógrafo Juan Rulfo parece ter nascido bem mais tarde.

Apesar de suas fotos terem sido publicadas já na década de 40, na revista América, ele só foi reconhecido como fotógrafo quando aconteceu a exposição Homenaje Nacional, no Palacio de Bellas Artes, na Cidade do México. Três anos depois, 96 imagens da exposição se transformaram no livro “Inframundo”. Depois vieram “México, Juan Rulfo Fotógrafo”, “Juan Rulfo, letras e imágenes” e “Juan Rulfo”, todos lançados a partir de 2001.

É claro que as duas coisas, fotografia e literatura, estão sempre sendo comparadas. Há os que procuram as similaridades. E os que procuram as diferenças. Os que acreditam que ele escrevia para expressar o que não cabia nas fotos. E os que acham que ele fotografava para completar com imagens suas histórias. Mas Victor Jimenez, curador do livro “100 fotografias”, encerra a questão: “os dois conjuntos de obra que Rulfo nos legou não podem ser vistos em separado ou como complementares. São, ao fim e ao cabo, uma coisa só”. Pensando dessa forma, o melhor parece ser deixar o livro de fotos junto com o romance “Pedro Páramo”, no meu armário de livros.

É um velho armário fechado com portas de vidro, onde protejo da fúria tsunâmica de minha filha de cinco anos alguns objetos preciosos. Estão lá minhas velhas câmeras analógicas, duas cumbucas feitas pelos índios Assurini, do Pará, uma miniatura em cerâmica de uma peça arqueológica Maracá, um cartaz enrolado do Museu de Arqueologia e Etnologia de São Paulo, um exemplar de “Amazônia Antiga”. Além de vários livros mesmo, já que é para isso que se presta um armário de livros. Pierre Verger, Roger Bastide, Guimarães Rosa, Machado de Assis, Gabriel García Marquez, Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Jorge Amado, José Cândido de Carvalho, Joyce, Cortázar, Borges, Hemingway, uma fração da coleção rubra e doirada “Os Imortais da Literatura Universal”, além de um monte de porcarias, das quais não me desfaço porque sou apegada a livros, mesmo aos ruins. Tenho até a “Moderna Enciclopédia Sexual”, publicada na década de 60, quando o divórcio ainda “deveria ser incluído na legislação brasileira”. Nesse armário de livros ganhos, esquecidos e, confesso nem um pouco envergonhada, furtados, ele estaria a salvo. E em boa companhia.

Mas eu ainda estou no processo de encantamento, daqueles bobinhos que temos em começos de namoro. Quero que ele fique ao alcance das minhas mãos. A qualquer momento do dia, posso pegá-lo e passear os olhos pelas fotos. Ou ler um dos vários textos. Ou simplesmente deslizar a mão pela capa, para evitar que qualquer poeirinha o incomode. Além do mais, minha filha já vai fazer cinco anos, está na hora de aprender a respeitar as coisas sagradas. E ela já sabe o que acontecerá se causar algum dano ao meu livro:

- Não sabe, Helena?

- Sei, mãe, a coisa vai ficar feia po meu lado!