quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Amazônia Antiga - Partida


Mais um barco se apronta para sair. Mulheres entram trazendo seus filhos e suas sacolas. E homens, carregando caixas nos ombros. Muita gente embarcando rapidamente, escolhendo o melhor lugar para armar a rede e depositar o aparelho de som, que garantirá a trilha sonora de todo o percurso. Alguns estão voltando para casa, outros vão a um batizado, há quem esteja deixando o lar para encontrar novos destinos. A viagem é longa, são dias pela imensidão do rio. Durante a noite faz muito frio, mas o dia é ensolarado e calmo, como a superfície plana da água. Nas margens, aqui e acolá, algumas casas de madeira, com a pintura azul desbotada, rodeadas de altas palmeiras. E a densa mata, muralha muito verde.
De vez em quando, uma pequena canoa se aproxima do barco. Crianças sobem pela corda. Trazem camarões secos ou açaí batido. Antes que todos possam reparar na mercadoria, voltam para o casco. Não devem se afastar de casa. Um trânsito incessante que se repete a cada dia, levando pessoas de uma grande cidade à outra, parando em outras menores, atravessando as estradas fluviais. Se para mim é uma novidade essa experiência, para o morador da Amazônia são caminhos habituais, rumos que se tomam desde tempos muito remotos, quando outros eram os que dominavam essa paisagem.
Olhar as pequenas casas isoladas e pensar que há quinhentos anos, quando os primeiros europeus trilharam o mesmo caminho em viagem de reconhecimento, boa parte dessa área era bem mais habitada que hoje é uma espécie de volta no tempo. Caminhar por essas margens há milênios podia significar o encontro com estradas, aldeias, plantações, línguas desconhecidas. Adentrar os sertões podia levar a outros povoados, densos agrupamentos situados a vários dias de caminho por terra ou água.
Cada vez que o barco aporta, as pessoas se acotovelam, céleres, para pisar novamente em terra, tão carregadas que estão com suas crianças e seus pertences. Há pressa, sempre há pressa. Próximo ao porto, muitas vezes há também um mercado. Ervas medicinais, frutos da terra, colheitas recentes, peixes de boa carne. E cestos e potes e panos e colares e pulseiras. Analisando vestígios arqueológicos, sabe-se hoje que, unindo toda a Amazônia, bem antes desses atuais mercados, já havia uma complexa rede de intercâmbio comercial. Peixe seco produzido por ribeirinhos, farinha torrada por sertanejos, ferramentas talhadas em rocha, ornamentos dourados que vinham de uma tal aldeia do ouro. Para lá e para cá, havia quem ia e vinha com suas embarcações lotadas de produtos comerciáveis. No estoque fluvial, seguia junto um pouco do saber de cada povo. Um diferente modo de curar uma doença, um trejeito de dança, um desenho na pintura da vasilha. E umas estórias que se espalhavam igarapés adentro, unindo diferentes povos em semelhantes devoções, mostrando que o fio da religiosidade percorria longos caminhos na disseminação do sagrado.

(Trecho do livro Amazônia Antiga, DBA Editora / Fotos Arquipélago de Marajó)

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