segunda-feira, 12 de outubro de 2009

A Senhora

No rádio, um brega paraense. A menina, nem gente quase, ensaia palmas e balança o corpo miudinho ao ritmo amazônico. Da letra, me esqueci. Mas, claro, falava de amor. A senhora diverte-se com a cena e a incentiva, ela própria surda a não poder ouvir a canção. Vejo, estremeço. Por um instante, a cena me parece uma trégua entre a sombra da morte que se aproxima e a luminosidade da vida que começa.
Foi a senhora quem me ligou. Disse com sua voz um tanto lúgubre, um tanto assoprada, que está muito cansada. Com muito sono. Mas tem medo de se deitar e não acordar mais. Dramaticidade lusitana. Digo para que ela não pense assim, mas sei que tem razão. Dona Lucinda. A morte me parece tão próxima, tão inevitável, como se alguém muito doente.
Vou vê-la, passo uma noite em seu apartamento. Medo, talvez, que ela tenha mesmo algum mal estar enquanto só. Vontade de ajudar com a presença da menina. Não sei.
Sei que me surpreendo ao ouvi-la falar do genro, da neta, da nora, da ‘preta’. O rosto duro, a fala dura. Repreende a conduta alheia com um orgulho infantil, como se adolescente ainda ignorante das voltas que o mundo da. A irmã bem me avisara que ela era rancorosa. A irmã... Quase tão velha, quase tão rancorosa.
Digo a ela, como se ela fosse jovem e eu tivesse a sabedoria da velhice, que já faz tanto tempo... Nas entrelinhas digo que não vale a pena tanto ressentimento, que o tempo é remédio e água, lava alma e trás a cura. Mas a resposta me deixa muda. “Nunca que vou esquecer minha filha”. Então, é seu entendimento, o rancor se faz justo pelo apelo do amor materno. Quero gritar “senhora, senhora! Ela vem, ela vem! A morte vem depressa! Não há mais tempo para depurar, para desgastar! Ela vem, senhora!”. Quero dizer a ela que não há mais horas para isto. Como no corredor da morte, quando vem o padre ouvir a última confissão, lembrando que aos arrependidos Deus trará perdão. Me surpreende que seja assim seu proceder.
Não tenho autoridade para lhe dar sermão. Quem poderia ter? Aos noventa e sete anos, a senhora percorreu caminhos demais, não há quem possa lhe falar de certo ou errado. Tento ajudar silenciando sobre os casos, não encomprido assuntos de mal dizer. Apenas mostro que me interesso mais por ouvir a história de sua vida. A morte da mãe, a madrasta, o namorado. A vida que valeu suas penas, que lhe moldou a pessoa que hoje é.
Mas há algo de estranho nesta relação. Habituei-me a pensar nas pessoas mais velhas como sabias e instrutoras. Mas esta, na verdade, desperta o que há de maturidade em mim, me obriga a ser delicadamente materna, como fosse eu a mulher experiente.
E com a menina, há em seus olhos uma trégua nos reclames e a fala dificultada conta que há um gato. Um gatão, olhe ali o gatão. A menina, pequenina, nina, não bem compreende. Mas seus olhozinhos atentos acompanham intrigados a senhora com interesse. Outra hora, a boca torta canta para que o bicho papão deixe o neném dormir sossegado. E suas mãos inchadas passeiam pelo corpinho enxuto de minha filha em cócegas que lhe arrancam gargalhadas. Pequena, pequenina, infante entregue em risos de carinho. Não a sabe velha, não a sabe doente. Não a vê bela ou feia. As duas apenas se entendem. Trocam afeto sincero.
Para mim, a senhora, é feita de mistério. Me abre um vinho tinto e, apoiada na bengala, me prepara o almoço saboroso. Um sem número de segredos. A representação viva, muito viva, de historias humanas entrelaçadas, de perdas e acúmulos, de assentamento e partida. Para mim, a senhora é como um róseo unicórnio, sentado num sofá de tecido verde escuro. Não a adivinho, não a creio. Apenas a vejo com olhos de ternura e despedida.


(Dona Lucinda faleceu dia 29 de setembro de 2009, aos 99 anos e 7 meses).

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