quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Insulina (uma estória de amor)



Uma das coisas que marcou a minha infância, foi a diabete do meu pai. Ela norteava boa parte do cotidiano familiar, como os horários rígidos para as refeições, o pouco açúcar no café que minha mãe preparava e os lanches obrigatórios durantes as viagens. Esta parte dos lanches se tornou uma das minha preferências gastronômicas –se é que se pode chamar rocambole Pullman de goiaba de gastronomia. Todas as vezes que íamos para o litoral, pela Br-116, parávamos no mesmo ponto da Estrada da Banana, em frente à mesma árvore, e comíamos rocambole com um pouco de café. A intenção era evitar que ele tivesse hipoglicemia, já que tomava doses diárias de insulina. E eu, ainda tão pequena, ansiava pela árvore e pelo recheio vermelho e branco, de goiabada com chantili, uma mistura tão perfeita quanto era para mim unir um lanche à proximidade da praia. Mas ainda mais marcante eram as injeções matinais.
Todas as manhãs, invariavelmente, minha mãe fervia a seringa de vidro numa caixinha de metal, levada diretamente ao queimador do fogão. Me lembro ainda do ruído da água fervente e da imagem das bolhas pululando ao redor da seringa deitada. Era sempre de manhã bem cedo, com a cozinha clareada por uma luz natural ainda difusa, e o rádio ligado em alguma estação de notícias. Eu observava calada minha mãe preparar a seringa, introduzir a agulha no vidrinho de insulina, atravessando o lacre de borracha, puxar o líquido, expelir uma gotinha para garantir que não ficaria nem um pouco de ar e se aproximar delicada de meu pai. Ao mesmo tempo, podia ver quando ele levantava a manga da camiseta, expondo um braço magro e forte, bonito e moreno como ele sempre foi. Então se virava para minha mãe, oferecendo seus músculos com um ar sereno no rosto. Eu mantinha meu olhar fixo até o momento em que minha mãe o tocava com uma mão, com a seringa já pronta na outra. E desviava depressa o olhar, com a aversão eterna que tenho por qualquer tipo de injeção. Poucos segundos depois, via minha mãe esfregando o algodão e meu pai abaixar a manga. Um ritual amoroso que se repetiu por quase 25 anos, interrompido repentinamente pela morte prematura de meu pai, um dia depois de chegarmos de mais uma viagem ao litoral.
Esta lembrança se fixou na minha memória como um incansável ritual de amor. Era o símbolo diário da simbiose afetiva encenada por décadas por meus pais. Um modelo amoroso doentio, onde ela representa a esposa devota e ele o homem bonito que carrega uma vunerabilidade oculta. Até hoje, ela fala dele com um olhar resignado que não esconde paixão. Até hoje, me lembro dele como este homem bonito que, apesar da aparência forte, necessitava de cuidados. Um modelo que, adulta, rejeitei. E, sem notar, repeti.

2 comentários:

  1. Comovente relato, cheio de símbolos de valor. É triste, mas não deixa de ser belo. Me emocionei só de me deixar levar por suas palavras e lembranças...

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  2. Você é uma criatura encantadoramente talentosa!

    www.queromaisfotos.wordpress.com
    @_luisfilipe

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