Depois de uma cansativa e frustrada caminhada pela mata em busca de um suposto sítio arqueológico, voltamos enfim à margem onde tínhamos aportado. Apenas para descobrir que a maré havia secado. Entre nós e nosso barco: lama. No começo, até que não foi tão difícil. Bastava levantar a perna bem alto, dar um passo largo, afundar o pé novamente. Mas os passos iam ficando cada vez mais pesados, e o sol mais ardido, e a lama mais funda. Quando ela já tinha engolido metade do corpo e o barco ainda estava a uns cinquenta metros de distância, percebi que a vida nunca havia me parecido tão difícil (nessa época, eu ainda não era mãe). Veio o desespero, a birrenta vontade de desistir e dormir na mata, à espera da cheia da maré. Mas uma olhada rápida nos mostrou que a margem, naquela altura, já estava tão distante quanto a voadeira. Ir em frente era a única opção. O que aconteceu dali em diante não sou capaz de explicar. Um impulso inesperado, um segundo fôlego, um não-sei-quê de força. E já estávamos exaustos dentro do barco, com alguns rapazes caboclos que nos olhavam sem entender e um pequeno jacaré, amordaçado, que não teve a mesma sorte de safar-se.
Algumas horas depois, já tranquilos, compartilhamos o jantar com uma família ribeirinha, sem vizinhos à vista. A casa é de madeira, construída sobre pilares, para a passagem da água nos tempos de cheia. Em cima da mesa, a luz fraca de uma lamparina compete com as chamas do fogão a lenha, onde a mulher prepara graúdos camarões, tirados há pouco da água doce, que vai servindo a todos (o jacaré já era).
Estamos bem em frente ao gigante Amazonas, no ponto em que ele se casa com o oceano Atlântico e cercados pela mata densa, distante muitas horas de barco da cidade mais próxima. À porta da casa, no alto da escada que leva ao solo, posso observar as crianças que se deliciam barulhentas e risonhas com o banquete singelo e o escuro absoluto que nos rodeia. Experimento compreender como é a vida dessas pessoas, tão isoladas do resto do mundo e, ao mesmo tempo, tão senhoras em sua solidão. Numa noite tão escura como essa, de pouca lua e muitas estrelas, não é difícil vislumbrar fantasmas de outras eras, visagens que caminham pela mata protegendo seus espaços sagrados. Mas não há medo. Só uma sensação de que a solidão é ilusória, de que, por todo os lados, guardiões espreitam. Vejo, aqui, apenas uma família de pai-mãe-e-filhos. Mas quem pode afirmar quantos pés de gente passaram por esse mesmo chão nos últimos milhares de anos?
Trecho do livro Amazônia Antiga, Arqueologia do Entorno, DBA Editora
segunda-feira, 21 de dezembro de 2009
quinta-feira, 17 de dezembro de 2009
Troca de Casais
- Eh... foi legal ficar com ele?
-Hunhum.
-...foi...?
- Foi. Nada extraordinário, mas foi bem legal.
- E...é...hum...
-Eu sei o que você quer perguntar.
-Eu?! O quê?
- Você quer saber se o pau dele é maior que o seu.
- Eu...? Ah...
-Tudo bem, eu conto.
-Conta?!
-Claro! Conto sim. Mas tem uma condição.
- Qual?
-Você tem que perguntar.
-Perguntar? Você acha que eu vou perguntar uma coisa destas?
-Se você perguntar, eu conto.
- Hum.
-Conto sim, juro. Mas só se-vo-cê-per-gun-tar...
-Não vou perguntar!
-Você é quem sabe.
- Não vou perguntar.
- Então tá.
- ...
- Mas, se perguntar, eu conto.
- ...
- ...
- ...eh...
-?
-Ok!
- ?
- O pau dele é maior do que o meu?
- Hahahahaha! Sabia que era isto o que você queria saber!
-Hunhum.
-...foi...?
- Foi. Nada extraordinário, mas foi bem legal.
- E...é...hum...
-Eu sei o que você quer perguntar.
-Eu?! O quê?
- Você quer saber se o pau dele é maior que o seu.
- Eu...? Ah...
-Tudo bem, eu conto.
-Conta?!
-Claro! Conto sim. Mas tem uma condição.
- Qual?
-Você tem que perguntar.
-Perguntar? Você acha que eu vou perguntar uma coisa destas?
-Se você perguntar, eu conto.
- Hum.
-Conto sim, juro. Mas só se-vo-cê-per-gun-tar...
-Não vou perguntar!
-Você é quem sabe.
- Não vou perguntar.
- Então tá.
- ...
- Mas, se perguntar, eu conto.
- ...
- ...
- ...eh...
-?
-Ok!
- ?
- O pau dele é maior do que o meu?
- Hahahahaha! Sabia que era isto o que você queria saber!
sexta-feira, 4 de dezembro de 2009
Água mole...
Na primeira vez em que Ricardo lhe deu uma cantada, ela ficou sem saber o que fazer. Era tão novinha, recém chegada na Universidade, nem sabia como dizer não, temerosa de magoar o rapaz. Mas ela já estava investindo em outra rapaz, um amigo dele, com quem acabou tendo um namoro intenso e tumultuado. Quando o tal romance acabou, quem apareceu? Ricardo. Ele estava novamente com olhos pedintes e voz amorosa. A diferença é que agora ela já não era tão inocente. E já tinha aprendido que Ricardo era um xavequeiro quase profissional. Bastava passar uma mulher na frente dele – ou atrás, ao lado, na esquina- e ele já espichava os grandes olhos de cílios longos e chegava mais perto para dizer seu texto ensaiado. Chegava a ponto de dizer a mesma coisa a garotas diferentes, que se divertiam depois comentando a gafe masculina. O que não impedia a sua lista de conquistas de crescer cada vez mais. De algum modo, porém, ele foi fazendo com que ela se sentisse especial. Elogiava não sua beleza, mas sua sensualidade. Ele parecia tão convicto de que ela era boa amante! Parecia querer tanto experimentar. Ela é que não queria nada. Estava tentando se recuperar de seu último desastre amoroso.
Mas, bastava por os pés numa festa, lá vinha o mocinho. Um mês depois, num bar qualquer, de novo ele. Insistentemente, assiduamente, lentamente. Fazia promessas sexuais, ia dizendo aos poucos suas habilidades. Depois de um tempo, ela já nem dava trela. Mas começou a gostar da situação. Virou uma brincadeira que beirava o sadismo. Mal avistava a figura pequena por trás dos óculos, e já começava a assumir uma postura mais sensual, preparava um sorriso dúbio, deixava os olhos prontos para um leve desdém divertido.
O que este rapaz estava fazendo era: dar poder a uma mulher. Uma deliciosa sensação de poder sexual. Sem um único toque, sem um único beijo, ele a transformava numa potente força. Ela gostou tanto que começou a provocá-lo. Chegou a dizer, brincando,que ele era, no fundo, um menino bonzinho. O que só o instigava mais. Esta sensação de poder feminino crescia a ponto de se transformar em desejo.
Uma noite, ao chegar a uma festa na casa de colegas da faculdade, ele já a cercou. Os olhos cada vez mais pidões, a voz cada vez mais insinuante, os corpos cada vez mais próximos. E disparou, sem dar tempo a ela de perceber: “hoje você podia dormir la em casa”. Três longos anos depois da primeira abordagem, ele ouviu sem acreditar a inesperada resposta: “tudo bem. Quando você for embora, me chama”.
Nem ela saberia dizer quando foi que decidiu dar pra ele. Mas a tensão erótica tinha chegada a um ponto que não havia mais o que inventar. Dançou a noite inteira, bebeu pouco, conversou com amigas, recebeu outros olhares. Já de madrugada, o moço se aproximou novamente e avisou incrédulo que estava indo. “Tá. Vou pegar minha bolsa”.
No caminho para a casa dele, caminhando lado a lado sem se tocarem, conversaram sobre coisas a toa. E lembraram quando se conheceram, sobre o ex-namorado dela, sobre todo o tempo que se passara entre a primeira cantada e esta noite. Então ele estacou e confessou: não estava acreditando que ela, finalmente, ia dormir com ele. Parecia quase decepcionado, como se estivesse tão acostumado ao jogo criado que temia perdê-lo.
Só ao chegar em casa tomou a iniciativa de tocá-la, um pouco sem jeito, tão tímido quanto ela. Para iniciar um noite memorável, quando ele cumpriu todas as promessa feitas e ela mostrou que valeu a pena a espera.
Mas, bastava por os pés numa festa, lá vinha o mocinho. Um mês depois, num bar qualquer, de novo ele. Insistentemente, assiduamente, lentamente. Fazia promessas sexuais, ia dizendo aos poucos suas habilidades. Depois de um tempo, ela já nem dava trela. Mas começou a gostar da situação. Virou uma brincadeira que beirava o sadismo. Mal avistava a figura pequena por trás dos óculos, e já começava a assumir uma postura mais sensual, preparava um sorriso dúbio, deixava os olhos prontos para um leve desdém divertido.
O que este rapaz estava fazendo era: dar poder a uma mulher. Uma deliciosa sensação de poder sexual. Sem um único toque, sem um único beijo, ele a transformava numa potente força. Ela gostou tanto que começou a provocá-lo. Chegou a dizer, brincando,que ele era, no fundo, um menino bonzinho. O que só o instigava mais. Esta sensação de poder feminino crescia a ponto de se transformar em desejo.
Uma noite, ao chegar a uma festa na casa de colegas da faculdade, ele já a cercou. Os olhos cada vez mais pidões, a voz cada vez mais insinuante, os corpos cada vez mais próximos. E disparou, sem dar tempo a ela de perceber: “hoje você podia dormir la em casa”. Três longos anos depois da primeira abordagem, ele ouviu sem acreditar a inesperada resposta: “tudo bem. Quando você for embora, me chama”.
Nem ela saberia dizer quando foi que decidiu dar pra ele. Mas a tensão erótica tinha chegada a um ponto que não havia mais o que inventar. Dançou a noite inteira, bebeu pouco, conversou com amigas, recebeu outros olhares. Já de madrugada, o moço se aproximou novamente e avisou incrédulo que estava indo. “Tá. Vou pegar minha bolsa”.
No caminho para a casa dele, caminhando lado a lado sem se tocarem, conversaram sobre coisas a toa. E lembraram quando se conheceram, sobre o ex-namorado dela, sobre todo o tempo que se passara entre a primeira cantada e esta noite. Então ele estacou e confessou: não estava acreditando que ela, finalmente, ia dormir com ele. Parecia quase decepcionado, como se estivesse tão acostumado ao jogo criado que temia perdê-lo.
Só ao chegar em casa tomou a iniciativa de tocá-la, um pouco sem jeito, tão tímido quanto ela. Para iniciar um noite memorável, quando ele cumpriu todas as promessa feitas e ela mostrou que valeu a pena a espera.
sexta-feira, 27 de novembro de 2009
Sagrado
quarta-feira, 25 de novembro de 2009
A "Greguinha"
O dia amanhece com o cheiro de café recém-coado e o barulho das batedeiras manuais de açaí, vindos das pequenas casas de madeira enfileiradas na beira. Era preciso esperar ainda algumas horas enquanto a vazante recolhia as águas do rio Araramã e deixava a margem finalmente exposta. Desço do nosso barco e caminho pela única rua, uma espécie de trapiche de madeira, que compõe a Vila Tessalônica, uma comunidade a seis horas do centro da cidade de Afuá, na região do Arquipélago do Marajó, no Pará.
Uma mulher me chama e, enquanto aponta um local, me fala: “Venha ver a greguinha”. Aproximo-me da beira enlameada e, sob uma grande árvore, vejo, ainda semienterrada, uma urna funerária. Apenas uma parte aflora à superfície. Neste pedaço, desenhos incisos realmente se assemelham a volutas gregas, caprichosamente traçadas em relevo.
Uma peça arqueológica produzida pelos índios marajoaras, que ocuparam a área entre os anos 450 d.C. e 1350 d.C. Além da greguinha, várias outras urnas se exibem cada vez que o rio baixa. Para os moradores da Vila Tessalônica, esta convivência com o passado remoto já faz parte de suas vidas. Seu Joaquim Ferreira tem 70 anos, um bigode ralo e branco, e nos conta que foi um dos primeiros a se mudar para o local, há mais de 40 anos. “Nesta época, tinha muito mais vasilhas. Hoje existe pouca peça inteira, à mostra, a maioria foi quebrando com a força da água.”
Com a voz tranquila, ele me fala sobre a fantasia muitos têm de que as urnas eram potes usados para se guardar ouro. Mas ele sabe que o objetivo era outro. “Elas serviam para agasalhar os mortos.” A vila - um pequeno alinhamento de casas, com uma igreja evangélica e um posto médico - está postada às margens do rio Araramã. E inocentemente plantada sobre um aterro funerário, onde possivelmente se realizavam ritos sagrados.
O fato é que, por todo o Arquipélago de Marajó, esses vestígios da passagem do homem antes da chegada dos europeus são imensos. Quando boa parte das ilhas passou a ser ocupada por fazendas que investiam em pecuária bufalina, com a chegada dos robustos búfalos de chifres tristonhos, muitas peças passaram a ser encontradas. Durante 15 dias, fomos com nosso barco visitando diversas dessas localidades. Em todas, fragmentos de cerâmica iam avisando que, por ali, passou alguém num passado remoto (...)
Naquela manhã na Vila Tessalônica, onde me mostraram a greguinha, não compreendi sua real importância. No caminho de volta, enquanto o barco serpenteava vagaroso pelas águas escuras do rio Araramã, observei em silêncio suas margens tomadas pela mata fechada, com altos açaizeiros espetados aqui e acolá. Só então me dei conta de que toquei com meus dedos um objeto sagrado. Uma peça moldada por mãos hábeis de alguém que viveu há séculos, talvez um milênio, para agasalhar o corpo de outra pessoa, num ritual de respeito e devoção. Quem foram esses antigos habitantes do Brasil? Para que deuses elevavam suas vozes? Com que nomes batizavam seus filhos? Que mensagens inscreveram no barro cozido dessas urnas? Segredos guardados por tantos anos, enterrados numa terra que hoje é pisada pelos pés de outros homens. Outros homens que têm, por sua vez, os próprios segredos para zelar.
(Este texto é parte de uma reportagem publicada na Rolling Stone, ed.31, abril de 2009)
segunda-feira, 16 de novembro de 2009
Eu sinto muito (Rodoanel, 13/11)
Durante meses, olhava para as obras do Rodoanel, no trecho em que ele cortará a Régis Bittencourt, no Embu, e pensava que deveria tirar um dia para fazer umas fotos. Um fim de tarde, depois mais passadas por lá. Fui observando a estrada se formar assustadoramente rápido e sentindo este desejo crescer. Mas não fui. Até sexta feira, 13 de novembro.
Meu irmão chegou em casa beirando às onze horas da noite dizendo que a vinda de São Paulo para Itapecerica tinha sido muito mais demorada que o previsto: o rodoanel caiu. Foi um susto, um medo, um choque. Caiu? Sobre alguns carros e um caminhão. Caiu? Me parecia tão grande esta idéia, um novo acidente em obras estatais. Uma rápida pesquisa na internet e ninguém sabia ainda informar nada. Nenhuma foto. Ir até lá ou não ir? Os carros não chegavam, o tráfego estava completamente interditado. E como voltar? Bem, dá-se um jeito. O fato é que cheguei, perto da meia noite, para encontrar um cenário comum a acidentes destas proporções: muitas viaturas, muitos policiais, bombeiros, jornalistas, fotógrafos. E o triplo deste número de curiosos, espalhados por barrancos e beiras de estrada. A pista liberada, sentido Curitiba, tinha um trânsito muito intenso, com pesados caminhões de faróis ofuscantes. Um caos controlado.
O sob o viaduto incompleto, a cena aberrante. Do caminhão, não se via a cabine, apenas a carroceria, com as rodas para o céu. Um carro vermelho, também capotado, parecia uma joaninha já cansada de agitar as pernas no ar. E um terceiro carro, tão esmagado, que parecia impossível que alguém pudesse ter estado ali dentro um dia. Estava tão achatado que não se identificava sua cor (só no dia seguinte soube pela TV que era preto). Os três motoristas já tinham sido socorridos, mas as notícias sobre seus estados de saúde eram obscuras. Neste embróglio todo, se viam pedaços das três vigas despencadas. A quarta ainda ligava os dois pedaços do viaduto incompleto e podia cair a qualquer momento. Um grande guindaste se preparava para retirá-la. Dois helicópteros zuniam. Um deles parecia procurar pouso e, de fato, pouso poucos minutos depois que cheguei.
Depois de fazer algumas fotos, principalmente do caminhão que absurdamente parecia plantar bananeiras, pensei que tinha chegado tarde. Então pressenti um princípio de tumulto. Era o governador José Serra, já cercado pelos repórteres televisivos. Antes da coletiva de imprensa que daria, se encafifou num canto, entre um carro de bombeiros e uma mureta, conversando com seus assessores ou ao celular. Policiais, dando as mãos, o isolaram dos jornalistas ansiosos que o encurralavam. Um jovem fotógrafo, com uma imensa e pesada mochila, abria caminho com os cotovelos. Percebi então, que há muitos anos não levava cotoveladas de fotógrafos. Mas aos poucos a imprensa se pacientou à espera da coletiva. E eu fiquei onde já estava, com a mão de dois policiais que faziam o cordão de isolamento encostadas no meu corpo, me separando do governador por pouco mais de um metro. Nesta quietude de espera, vi o governador, por quem, cá entre nós, nunca nutri simpatia, se transformar num homem. Um puro e simples homem. No que ele estava pensando? Nas implicacoes politicas do acidente? No proveito eleitoreiro que seus adversários tirariam disto? Nas consequencias práticas? Nas pessoas que estavam no hospital? Nas toneladas que caíam sobre suas costas? Não ouso dar um palpite. Mas me lembrei que até o mais vil dos políticos (e não é este o caso), também é um homem. E ele me pareceu, de repente, ali no escuro, de cabeça baixa, mão segurando o queixo, tão... vunerável. Era uma bomba que explodia em suas mãos. Uma responsabilidade desmedida da qual ele deveria dar conta. Era um homem e seu problema. Mal percebi que o volume de pessoas se deslocava enquanto eu continuava com minha lente apontada para seu rosto, esperando um pouco de luz. E ele me olhou. Baixei a câmera. Ele sorriu. Um sorriso triste, muito triste.
Dizem que nas faculdades de comunicação se ensinam a importância do tal jornalismo imparcial. É verdade? Não sei, sou formada em Desenho Industrial e passei os últimos dez anos trabalhando como jornalista porque sou mesmo muito cara de pau. Mas, a imparcialidade, é fato? Nunca acreditei muito nela e, se a resposta é positiva, reconheço que, então, tenho este péssimo defeito profissional: eu me envolvo. Chorei quando me despedi do centenário senhor Shunji Nishimura, chorei com a morte de seu Zito, fiz amizade com os pescadores da Juatinga. Ali, já estava eu novamente entregue, sofrendo pelo estrago causado, preocupada com as vítimas, solidária com os trabalhadores, tanto da obra quanto do resgate. E também com aquele homem triste, responsável por trazer soluções. Eu também estava triste. Uma rápida olhada na posição em que os carros estavam eram suficiente para se ter uma clara noção do tamanho do estrago. Era a morte rondando muito de perto, como uma fera acuando pessoas. Foram três carros, três vítimas que sobreviveram. Mas poderiam ter sido muitas. Um ônibus poderia ter sido atingido, muitos outros carros, muitos passageiros. Era, de fato, inacreditável que tenham sido apenas três as pessoas atingidas. E mais inacreditável ainda que tivessem escapado do tombo de toneladas de concreto com vida. Eu estava totalmente compassiva e só não chorara ainda por conta do estado de alerta que a fotografia provoca.
Depois da coletiva, em que o aglomerado de câmeras não me permitiu proximidade suficiente para ouvir alguma resposta, o governador se dirigiu ao helicóptero. Com todos nós na sua cola. Fui bem na frente e fiquei esperando. Os assessores impuseram um limite, pediram que ninguém ultrapassasse aquela linha, aninharam Serra no caminho. Então, não sei como, de repente me vi sozinha naquela linha, de frente para o governador livre, inexplicavelmente, de seus protetores. Nenhum outro fotógrafo, nenhum repórter de tv, nenhum assessor. E eu que, repito, nunca tive afinidades políticas ou simpatia pessoal, sentia uma grande compaixão por aquele homem. Com sua imensa responsabilidade, sua tranparente tristeza. Fomos nos aproximando um do outro, como se eu tivesse o dever de lhe falar e ele soubesse disto, até que ficamos cara a cara. Ficando na ponta dos pés, pude dizer próxima a seu ouvido, baixinho e pausado, três únicas palavras:
- Eu...sinto... muito!
O home triste me deu um leve beijo no rosto e respondeu, também em voz baixa:
-Obrigado.
Quando o helicóptero levantou vôo, e o aglomerado de jornalistas e curiosos tomou o rumo do acidente novamente, deixei que as lágrimas viessem. Aliviada em saber que, pelo menos desta vez, a morte tinha apenas tentado, sem levar ninguém com ela.
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quinta-feira, 12 de novembro de 2009
Pessoas que amei: Seu Zito, vaqueiro Roseano
Conhecer João Henrique Ribeiro, o menino Joãozito, o seu Zito, era parte do meu projeto de conclusão de curso, em que refiz a viagem que João Guimarães Rosa fez pelo sertão mineiro em 1952. Cheguei com o fotógrafo João Correia Filho, que Zito chamou de Xará, e a jornalista Patrícia Bonilha, a Margarida. E eu, já de cara, virei Chiquinha.
Citado por Rosa no livro “Tutaméia-Terceiras Estórias” como um jovem vaqueiro de inteligência aguçada, foi fácil compreender porque Zito agradou ao escritor: inteligência é uma coisa dificil de mesurar, mas me arrisco a dizer que ele foi uma das pessoas mais inteligentes que já conheci. Rápido, perspicaz e carismático. Mostrou o caderno com a viagem descrita em versos, que ele escrevia todos os dias, na hora do descanso, à luz da fogueira. Contou da comida que preparava na trempe para o grupo todo. E do ‘piriri’ que Rosa, desacostumado com a comida temperada na banha, teve nos primeiros dias. E de quando o escritor o convidou para ir embora com ele para a cidade grande estudar. E ele preferiu o ofício de vaqueiro.
Nos levou pra conhecer a Sirga, fazenda de onde a tropa tinha partido, e a Tolda, uma antiga fazenda incluída no roteiro. E ia falando do Rosa, com quem manteve um estreito laço durante toda a viagem, com intimidade. E de Manuel Nardy, transfomado em personagem da novela “Uma história de amor”, de “Corpo de Baile” (Manuelzão e Miguilim). Ah, não que ele tivesse ciúmes de Manuelzão! Mas havia uma lucidez na crítica que fazia ao colega de viagem, que se enlevou pela fama e companhia dos acadêmicos da Usp.
Nos deu janta e pouso. E contou da visita do fotógrafo Fernando Granato, que corria atrás de belas imagens para seu livro “Nas trilhas do Rosa”. O moço que chegou e encontrou o Zito na porta. O Zito que, caradepaumente, disse que não estava: mentiu que era um vizinho que estava apenas cuidando da casa. Fernando pediu água. E ele disse que não tinha gelada. Só quando o fotógrafo já ia embora, depois de ter tomado água morna e se decepcionado com a longa viagem em vão, ele o chamou e disse rindo: “Ei! O Zito sou eu!”. Contava e gargalhava, achando graça no urbano enganado pelo sertanejo. Falou também de Pedro Bial, que passou com eles uns dias enquanto fazia o documentario “Os nomes do Rosa”. “Gente boa, muito gente boa. Mas fuma muito!”.
Alguns meses depois, João Correia esteve lá novamente com outra jornalista, Giedre Moura. Quando eu voltei, em mais alguns meses, ele foi logo me chamando de lado e denunciando, enquanto apontava com o queixo para João, uma infidelidade: “Esteve aqui com outra! Uma ‘Giedre’”. No jantar, enquanto todos conversavam, ele se manteve silencioso na cabeceira por longos minutos. Até que, com uma voz rouca, disse arrastado: “ Gieeeeeeeeeeedre!”. Bateu a mão fechada no peito e completou a galhofa: “estou com uma tosse! Garganta arranhando...”. Era um moquele sexagenário.
Morreu aos 65 anos, pouco antes da “Semana Roseana de 2002” em Cordisburgo, terra natal de Guimarães Rosa, em que seria o homenageado. Sua esposa, miúda e tímida, o representou emocionada. E eu sofri como se ele fosse da minha família. Desta relação de amor distante, guardo a terceira visita que fiz, para uma reportagem para a revisa Gula. Ele, imponente, vestido bonito com a capa gaúcha e chapéu, deixando o braço afetado por um derrame ao lado da esposa, enquanto me abraçava com o braço saudável para a foto posada.
Me explicou como se faz um bom fogão a lenha, com o chão inclinado para conduzir o calor. Me levou ao açougue para escolher a melhor costela, preparou a “vaca atolada”. E contou da visita dos jornalistas da Globo Rural – Tostão e Ernesto de Souza. Enquanto Tostão proseava ao modo mineiro, Ernesto procurava frenético um bom lugar para a foto. Eu sei que gostou deles, mas falava de um jeito irônico, num despeito que eu sabia que era só graça.
Me fingindo de enciumada, perguntei:
-Para eles o senhor também fez comida?
Só para, satisfeita, ouvi-lo responder (olhos carinhosos postos nos meus, um sorriso leve no rosto escuro):
- Não, Chiquinha! Eu só cozinho pra você!
Citado por Rosa no livro “Tutaméia-Terceiras Estórias” como um jovem vaqueiro de inteligência aguçada, foi fácil compreender porque Zito agradou ao escritor: inteligência é uma coisa dificil de mesurar, mas me arrisco a dizer que ele foi uma das pessoas mais inteligentes que já conheci. Rápido, perspicaz e carismático. Mostrou o caderno com a viagem descrita em versos, que ele escrevia todos os dias, na hora do descanso, à luz da fogueira. Contou da comida que preparava na trempe para o grupo todo. E do ‘piriri’ que Rosa, desacostumado com a comida temperada na banha, teve nos primeiros dias. E de quando o escritor o convidou para ir embora com ele para a cidade grande estudar. E ele preferiu o ofício de vaqueiro.
Nos levou pra conhecer a Sirga, fazenda de onde a tropa tinha partido, e a Tolda, uma antiga fazenda incluída no roteiro. E ia falando do Rosa, com quem manteve um estreito laço durante toda a viagem, com intimidade. E de Manuel Nardy, transfomado em personagem da novela “Uma história de amor”, de “Corpo de Baile” (Manuelzão e Miguilim). Ah, não que ele tivesse ciúmes de Manuelzão! Mas havia uma lucidez na crítica que fazia ao colega de viagem, que se enlevou pela fama e companhia dos acadêmicos da Usp.
Nos deu janta e pouso. E contou da visita do fotógrafo Fernando Granato, que corria atrás de belas imagens para seu livro “Nas trilhas do Rosa”. O moço que chegou e encontrou o Zito na porta. O Zito que, caradepaumente, disse que não estava: mentiu que era um vizinho que estava apenas cuidando da casa. Fernando pediu água. E ele disse que não tinha gelada. Só quando o fotógrafo já ia embora, depois de ter tomado água morna e se decepcionado com a longa viagem em vão, ele o chamou e disse rindo: “Ei! O Zito sou eu!”. Contava e gargalhava, achando graça no urbano enganado pelo sertanejo. Falou também de Pedro Bial, que passou com eles uns dias enquanto fazia o documentario “Os nomes do Rosa”. “Gente boa, muito gente boa. Mas fuma muito!”.
Alguns meses depois, João Correia esteve lá novamente com outra jornalista, Giedre Moura. Quando eu voltei, em mais alguns meses, ele foi logo me chamando de lado e denunciando, enquanto apontava com o queixo para João, uma infidelidade: “Esteve aqui com outra! Uma ‘Giedre’”. No jantar, enquanto todos conversavam, ele se manteve silencioso na cabeceira por longos minutos. Até que, com uma voz rouca, disse arrastado: “ Gieeeeeeeeeeedre!”. Bateu a mão fechada no peito e completou a galhofa: “estou com uma tosse! Garganta arranhando...”. Era um moquele sexagenário.
Morreu aos 65 anos, pouco antes da “Semana Roseana de 2002” em Cordisburgo, terra natal de Guimarães Rosa, em que seria o homenageado. Sua esposa, miúda e tímida, o representou emocionada. E eu sofri como se ele fosse da minha família. Desta relação de amor distante, guardo a terceira visita que fiz, para uma reportagem para a revisa Gula. Ele, imponente, vestido bonito com a capa gaúcha e chapéu, deixando o braço afetado por um derrame ao lado da esposa, enquanto me abraçava com o braço saudável para a foto posada.
Me explicou como se faz um bom fogão a lenha, com o chão inclinado para conduzir o calor. Me levou ao açougue para escolher a melhor costela, preparou a “vaca atolada”. E contou da visita dos jornalistas da Globo Rural – Tostão e Ernesto de Souza. Enquanto Tostão proseava ao modo mineiro, Ernesto procurava frenético um bom lugar para a foto. Eu sei que gostou deles, mas falava de um jeito irônico, num despeito que eu sabia que era só graça.
Me fingindo de enciumada, perguntei:
-Para eles o senhor também fez comida?
Só para, satisfeita, ouvi-lo responder (olhos carinhosos postos nos meus, um sorriso leve no rosto escuro):
- Não, Chiquinha! Eu só cozinho pra você!
uma década
(Em junho do ano que vem, faz dez anos desde a primeira matéria minha publicada: uma reportagem de turismo para a Revista da Folha sobre o Parque Grande Sertão: Veredas. Eu não vou fazer uma ‘retrospectiva de carreira’! Não sou tão pretensiosa... Mas fiquei com vontade de contar algumas coisas que vivi neste tempo (é tempo, né?). Pessoas queridas,lugares interessantes, situações curiosas...Algumas ótimas, outras bem ruins. Hum, mais ótimas do que ruins, é verdade. Coisas que nunca foram publicadas mas que eu conto para os amigos.Vou começar por alguém que me marcou muito: seu Zito).
sábado, 7 de novembro de 2009
Uma mulher de vestido curto
Um fala daqui, outro fala dali. Há até quem diga que a história é um pouco maior: a moça, talvez, seria garota de programa. É boato? É fato? Não vejo a menor diferença, estamos num país em que a prostituição não contraria as leis. Há, inclusive, várias associações de apoio às profissionais do sexo (Em São Luís do Maranhão, por exemplo, a presidente da Associação era uma veterana chamada Jesus. Maria de Jesus...). Se ela é uma moça recatadíssima que pela primeira ousou mostrar as coxas ou se este é seu uniforme de trabalho, para mim, não vem ao caso.
Ah, mas ela estaria trabalhando dentro da faculdade. Trabalhando dentro da faculdade? Como assim? Alguém a flagrou fazendo sexo numa sala de aula ou coisa parecida em troca de uma pedra falsa, um sonho de valsa ou um corte de cetim? Quando eu estava na faculdade, as pessoas trabalhavam vendendo bolo de chocolate, bijuterias, livros... Até eu, que sempre fui péssima vendedora, vendi meus sanduíches naturais para poder comprar a tão ambicionada caixa de giz pastel seco. Hum, teve também uma história de um flagra de dois rapazes em “atos libidinosos” na sala 58. Aquela sala lá no fundo do terreno, bem no escuro, cercada por árvores remanescente do cerrado, onde eu tinha aula duas vezes por semana com o professor Plácido. Desenho de observação. Um funcionário flagrou um futuro engenheiro e um futuro arquiteto numa situação um tanto – como vou dizer?- “íntima”. Nem sei se foram expulsos. Na época rolaram tantos boatos sobre quem seriam os personagens que acho que apenas foram convidados, discretamente, a mudar de “colégio” e ninguém soube muito bem o que se passou.
Mas, enfim, alguém flagrou a moça do vestido curto numa situação assim? Se sim, porque não dizem isto claramente? Se o problema é algo além da roupa, porque estão silenciando? Para proteger quem, a moça expulsa? Até poderia ser. Mas, oficialmente, não houve nada disto.
Então, vou escapar do diz-que-me-diz e das lembranças do meu tempo de universitária, ainda despreocupada com os pés-de-galinha, e vou me ater ao básico: a universidade alegou que ela estava com roupa inadequada. Sei, há o argumento de que ninguém vai de terno à praia ou de biquíni na reunião de pais na escolinha. Mas continuo achando que esta história de roupa curta, neste caso, é uma desculpa muito inconsistente para uma expulsão.
Quando eu estava na faculdade (puxa, voltei), um rapaz simplesmente arrancou toda a roupa no pátio lotado enquanto gritava dramático: “chega deste lirismo comedido!” (ai! Acontecia cada coisa na Unesp de Bauru!). Foi expulso? Foi. Mas só porque, depois disto, ele também jogou uma cadeira num painel de vidro. E destruir patrimônio público foi considerado motivo para expulsão. Mas, pela nudez, não. E, cá entre nós, existe roupa mais inadequada para ir à faculdade do que nenhuma? (Ainda mais no caso do Grilo, que não era assim um...ah, deixa pra lá).
Eu não conheço esta moça. Não sei sobre sua vida, não sei sua profissão, sua idade, seu nome... E nem pretendo saber. Tampouco estou escrevendo para defendê-la: não sou advogada. Mas a essência deste pensamento é brutal para mim. Uma mulher é ameaçada fisicamente e ofendida verbalmente porque está vestida com uma roupa “inadequada”. Ela é penalizada por isto. Os agressores não. Então estão legitimando o direito de coerção a uma mulher porque consideram seu comportamento “i-na-de-qua-do”?
Lembro-me daquelas histórias pavorosas de travestis e prostitutas que são agredidos, em alguns casos até a morte...Vá lá, muita gente pode achar que ir à faculdade com roupa de baile funk é incorreto, pode dizer que a moça fez caras e bocas, que assumiu uma atitude provocativa, que colou o número de seu celular no telefone público... Mas, e daí?! Parece-me uma inversão tão descabida colocar o seu comportamento sob julgamento nesta hora. O problema não é o que ela faz, diz ou usa (ou não usa!). O que deve ser observado é a reação dos outros envolvidos. Dos rapazes que ficaram dizendo que ela era uma loira gostosa que deveria ser ‘liberada’, das moças que acharam divertido fotografá-la chorando, dos funcionários que não conseguiram garantir a segurança. Este é o problema real: a turba descontrolada dentro de uma instituição supostamente educativa. ‘Mesmo que’ (lembrem-se, eu não sei nada sobre ela!) a moça em questão fosse uma meretriz abusadíssima fazendo ponto na frente da cantina, jovens se achando no direito de agredir alguém em nome de uma suposta moral sexual é assustador demais. É Talibã! E isto ainda é legitimado?
Nos tempos bíblicos, a adúltera pôde contar com Jesus. Em São Luís do Maranhão, as profissionais do sexo podem contar com a Jesus. Mas, e em São Bernardo do Campo? Para quem uma mulher pede ajuda quando as pedras começam a voar em sua direção?
Ah, mas ela estaria trabalhando dentro da faculdade. Trabalhando dentro da faculdade? Como assim? Alguém a flagrou fazendo sexo numa sala de aula ou coisa parecida em troca de uma pedra falsa, um sonho de valsa ou um corte de cetim? Quando eu estava na faculdade, as pessoas trabalhavam vendendo bolo de chocolate, bijuterias, livros... Até eu, que sempre fui péssima vendedora, vendi meus sanduíches naturais para poder comprar a tão ambicionada caixa de giz pastel seco. Hum, teve também uma história de um flagra de dois rapazes em “atos libidinosos” na sala 58. Aquela sala lá no fundo do terreno, bem no escuro, cercada por árvores remanescente do cerrado, onde eu tinha aula duas vezes por semana com o professor Plácido. Desenho de observação. Um funcionário flagrou um futuro engenheiro e um futuro arquiteto numa situação um tanto – como vou dizer?- “íntima”. Nem sei se foram expulsos. Na época rolaram tantos boatos sobre quem seriam os personagens que acho que apenas foram convidados, discretamente, a mudar de “colégio” e ninguém soube muito bem o que se passou.
Mas, enfim, alguém flagrou a moça do vestido curto numa situação assim? Se sim, porque não dizem isto claramente? Se o problema é algo além da roupa, porque estão silenciando? Para proteger quem, a moça expulsa? Até poderia ser. Mas, oficialmente, não houve nada disto.
Então, vou escapar do diz-que-me-diz e das lembranças do meu tempo de universitária, ainda despreocupada com os pés-de-galinha, e vou me ater ao básico: a universidade alegou que ela estava com roupa inadequada. Sei, há o argumento de que ninguém vai de terno à praia ou de biquíni na reunião de pais na escolinha. Mas continuo achando que esta história de roupa curta, neste caso, é uma desculpa muito inconsistente para uma expulsão.
Quando eu estava na faculdade (puxa, voltei), um rapaz simplesmente arrancou toda a roupa no pátio lotado enquanto gritava dramático: “chega deste lirismo comedido!” (ai! Acontecia cada coisa na Unesp de Bauru!). Foi expulso? Foi. Mas só porque, depois disto, ele também jogou uma cadeira num painel de vidro. E destruir patrimônio público foi considerado motivo para expulsão. Mas, pela nudez, não. E, cá entre nós, existe roupa mais inadequada para ir à faculdade do que nenhuma? (Ainda mais no caso do Grilo, que não era assim um...ah, deixa pra lá).
Eu não conheço esta moça. Não sei sobre sua vida, não sei sua profissão, sua idade, seu nome... E nem pretendo saber. Tampouco estou escrevendo para defendê-la: não sou advogada. Mas a essência deste pensamento é brutal para mim. Uma mulher é ameaçada fisicamente e ofendida verbalmente porque está vestida com uma roupa “inadequada”. Ela é penalizada por isto. Os agressores não. Então estão legitimando o direito de coerção a uma mulher porque consideram seu comportamento “i-na-de-qua-do”?
Lembro-me daquelas histórias pavorosas de travestis e prostitutas que são agredidos, em alguns casos até a morte...Vá lá, muita gente pode achar que ir à faculdade com roupa de baile funk é incorreto, pode dizer que a moça fez caras e bocas, que assumiu uma atitude provocativa, que colou o número de seu celular no telefone público... Mas, e daí?! Parece-me uma inversão tão descabida colocar o seu comportamento sob julgamento nesta hora. O problema não é o que ela faz, diz ou usa (ou não usa!). O que deve ser observado é a reação dos outros envolvidos. Dos rapazes que ficaram dizendo que ela era uma loira gostosa que deveria ser ‘liberada’, das moças que acharam divertido fotografá-la chorando, dos funcionários que não conseguiram garantir a segurança. Este é o problema real: a turba descontrolada dentro de uma instituição supostamente educativa. ‘Mesmo que’ (lembrem-se, eu não sei nada sobre ela!) a moça em questão fosse uma meretriz abusadíssima fazendo ponto na frente da cantina, jovens se achando no direito de agredir alguém em nome de uma suposta moral sexual é assustador demais. É Talibã! E isto ainda é legitimado?
Nos tempos bíblicos, a adúltera pôde contar com Jesus. Em São Luís do Maranhão, as profissionais do sexo podem contar com a Jesus. Mas, e em São Bernardo do Campo? Para quem uma mulher pede ajuda quando as pedras começam a voar em sua direção?
sexta-feira, 6 de novembro de 2009
quarta-feira, 28 de outubro de 2009
O fotógrafo e a comissária de vôo
Em 2007 fui com o fotógrafo Maurício de Paiva a um evento em homenagem ao Centenário da Imigração Japonesa. Haveria uma apresentação de um balé, vindo de uma colônia japonesa no interior de São Paulo, e uma exposição de fotos sobre a mesma colônia.
Como nós estávamos desenvolvendo um projeto sobre o Centenário, achamos de bom tom nos apresentar para a fotógrafa. Maurício chegou gentil - às vezes ele é adoravelmente cavalheiro - entregou cartão, presenteou-a com uma revista, com um belo ensaio seu, explicou quem era, contou do nosso projeto, falou de seu interesse em conhecer a tal colônia. Para seu espanto, a moça, arredia, muito grosseiramente disse que estava cansada de ver suas pautas roubadas (!?).
Já no final da noite- depois do balé, batatinhas no palito e vinho branco- quando estávamos de partida, ele encontrou, numa solidão desamparada, a revista que trouxera para a moça sobre um banco vazio. Era um exemplar da Caminhos da Terra, com fotos suas sobre a pré-história da Amazônia. Lá, abandonada, esquecida, nem olhada. Chegamos perto da fotógrafa, que conversava com algumas pessoas. Vinhobrancamente motivado, ele a olhou bem sério e mostrou a revista. Disse que ela a tinha jogado fora. Surpreendida, ela tentou se desculpar, mas, antes que conseguisse, ele disse em alto e bom som, uma única palavra que soou como uma educada e merecida (com o perdão da Maria da Penha) bofetada: “amadora”.
A fotógrafa, na verdade, era aeromoça. A história eu não sei muito bem, mas é mais ou menos assim: nas folgas das viagens a lugares distantes, começou a fazer algumas fotos. Conseguiu até publicar algumas numa revista. Nas férias, visitava a colônia japonesa e, depois de quatro anos, tinha juntado material para uma exposição. Se as fotos eram ‘boas’, não importa. Ela, de fato, continuava sendo amadora. Porque não tinha postura profissional.
Um médico que compra um sofisticado equipamento e veste seu colete de homem bomba nos dias sem plantão, não é um fotógrafo profissional. O micro empresário que passa as férias num workshop na Chapada Diamantina, não é fotógrafo profissional. O estudante de publicidade que monta sua galeria do flickr com excelentes cliques, não é fotógrafo profissional.
Por mais que se fale em um ambiente competitivo, um profissional de verdade não hostiliza um colega que se apresenta amigavelmente acusando-o de ladrão. Não desvaloriza o trabalho alheio. Não se declara dono exclusivo de pautas. Profissionalismo se faz com comprometimento, ética e respeito.
Isto vale para manicures, fonoaudiólogos, carpinteiros, comissários de vôo. E para fotógrafos, mesmo que se seja uma profissão em que se permite a bizarrice de associar o nome da profissão ao predicado do amadorismo.
(P.S. o projeto que fizemos sobre o Centenário da Imigração Japonesa foi publicado em várias revista, como National Geographic, Planeta, Caminhos da Terra, Aventuras na História... E em julho de 2009 nos rendeu o primeiro lugar no prêmio Masey Ferguson de Jornalismo por um especial publicado na Globo Rural. Nunca mais soube da aeromoça. Imagino que ainda esteja sorrindo em três idiomas,enquanto serve “suco, refrigerante ou água”).
Como nós estávamos desenvolvendo um projeto sobre o Centenário, achamos de bom tom nos apresentar para a fotógrafa. Maurício chegou gentil - às vezes ele é adoravelmente cavalheiro - entregou cartão, presenteou-a com uma revista, com um belo ensaio seu, explicou quem era, contou do nosso projeto, falou de seu interesse em conhecer a tal colônia. Para seu espanto, a moça, arredia, muito grosseiramente disse que estava cansada de ver suas pautas roubadas (!?).
Já no final da noite- depois do balé, batatinhas no palito e vinho branco- quando estávamos de partida, ele encontrou, numa solidão desamparada, a revista que trouxera para a moça sobre um banco vazio. Era um exemplar da Caminhos da Terra, com fotos suas sobre a pré-história da Amazônia. Lá, abandonada, esquecida, nem olhada. Chegamos perto da fotógrafa, que conversava com algumas pessoas. Vinhobrancamente motivado, ele a olhou bem sério e mostrou a revista. Disse que ela a tinha jogado fora. Surpreendida, ela tentou se desculpar, mas, antes que conseguisse, ele disse em alto e bom som, uma única palavra que soou como uma educada e merecida (com o perdão da Maria da Penha) bofetada: “amadora”.
A fotógrafa, na verdade, era aeromoça. A história eu não sei muito bem, mas é mais ou menos assim: nas folgas das viagens a lugares distantes, começou a fazer algumas fotos. Conseguiu até publicar algumas numa revista. Nas férias, visitava a colônia japonesa e, depois de quatro anos, tinha juntado material para uma exposição. Se as fotos eram ‘boas’, não importa. Ela, de fato, continuava sendo amadora. Porque não tinha postura profissional.
Um médico que compra um sofisticado equipamento e veste seu colete de homem bomba nos dias sem plantão, não é um fotógrafo profissional. O micro empresário que passa as férias num workshop na Chapada Diamantina, não é fotógrafo profissional. O estudante de publicidade que monta sua galeria do flickr com excelentes cliques, não é fotógrafo profissional.
Por mais que se fale em um ambiente competitivo, um profissional de verdade não hostiliza um colega que se apresenta amigavelmente acusando-o de ladrão. Não desvaloriza o trabalho alheio. Não se declara dono exclusivo de pautas. Profissionalismo se faz com comprometimento, ética e respeito.
Isto vale para manicures, fonoaudiólogos, carpinteiros, comissários de vôo. E para fotógrafos, mesmo que se seja uma profissão em que se permite a bizarrice de associar o nome da profissão ao predicado do amadorismo.
(P.S. o projeto que fizemos sobre o Centenário da Imigração Japonesa foi publicado em várias revista, como National Geographic, Planeta, Caminhos da Terra, Aventuras na História... E em julho de 2009 nos rendeu o primeiro lugar no prêmio Masey Ferguson de Jornalismo por um especial publicado na Globo Rural. Nunca mais soube da aeromoça. Imagino que ainda esteja sorrindo em três idiomas,enquanto serve “suco, refrigerante ou água”).
segunda-feira, 19 de outubro de 2009
quarta-feira, 14 de outubro de 2009
Amazônia Antiga I (ponta de flecha)
Em 2002, quando o americano James B. Petersen encontrou uma ponta de flecha no município amazonense de Iranduba, soube que ela despertava novas e velhas dúvidas. Petersen, no entanto, nem teve tempo de ouvir a todas. Ele podia ter optado por ser neurocirurgião ou professor de literatura. Mas veio para a Amazônia brasileira investigar nosso passado distante. Com essa escolha, definiu não só sua vida, mas também sua morte. Em 2005, sentado à mesa de um restaurante na estrada que liga Manacapuru a Manaus, foi surpreendido num rápido assalto. E morreu ali, com a maioria das questões ainda na fila de espera e algumas respostas que não teve tempo de expressar.
Quando vejo de perto a herança que ele deixou, a ponta de flecha, emociono-me mais do que podia esperar. Datada em 8500 anos, ela é o item confeccionado por mãos humanas mais antigo que já foi encontrado na Amazônia. Cabendo na palma da mão, sua forma é simétrica, e suas bordas, afiadas. É feita de sílex, uma rocha translúcida, com pequenas manchas escuras no interior. De perto, percebe-se que foi lascada muitas vezes, em cortes leves, por mãos habilidosas. Parece tão intacta que faz crer que nem chegou a ser usada. Uma pessoa com melhor capacidade de análise, como o próprio Petersen, poderia ficar horas observando os detalhes de seu feitio. Ora, o que estou dizendo! Arqueólogos já estão há anos tirando respostas desse objeto que eu olho sem compreender bem. Penso que talvez tenha sido confeccionado para a caça. Ou para rituais. Para eles, ela pode ser uma chave que indica soluções a respeito da antiguidade da presença do homem, rastros de migrações, intercâmbios culturais. Para mim, ela é portadora de uma mensagem misteriosa, guardada durante milhares de anos. Uma a uma, as questões racionais vão saindo de mansinho, deixando espaço livre para a subjetividade. Ao alcance de meus dedos, está uma peça carregada de traços humanos, que fez parte da vida de uma pessoa real, de uma história perdida nas pastas arquivadas do tempo, esse senhor que governa a tudo e a todos. Sempre as águas vão e vêm? Em meus olhos, é tempo de maré cheia.
Quando vejo de perto a herança que ele deixou, a ponta de flecha, emociono-me mais do que podia esperar. Datada em 8500 anos, ela é o item confeccionado por mãos humanas mais antigo que já foi encontrado na Amazônia. Cabendo na palma da mão, sua forma é simétrica, e suas bordas, afiadas. É feita de sílex, uma rocha translúcida, com pequenas manchas escuras no interior. De perto, percebe-se que foi lascada muitas vezes, em cortes leves, por mãos habilidosas. Parece tão intacta que faz crer que nem chegou a ser usada. Uma pessoa com melhor capacidade de análise, como o próprio Petersen, poderia ficar horas observando os detalhes de seu feitio. Ora, o que estou dizendo! Arqueólogos já estão há anos tirando respostas desse objeto que eu olho sem compreender bem. Penso que talvez tenha sido confeccionado para a caça. Ou para rituais. Para eles, ela pode ser uma chave que indica soluções a respeito da antiguidade da presença do homem, rastros de migrações, intercâmbios culturais. Para mim, ela é portadora de uma mensagem misteriosa, guardada durante milhares de anos. Uma a uma, as questões racionais vão saindo de mansinho, deixando espaço livre para a subjetividade. Ao alcance de meus dedos, está uma peça carregada de traços humanos, que fez parte da vida de uma pessoa real, de uma história perdida nas pastas arquivadas do tempo, esse senhor que governa a tudo e a todos. Sempre as águas vão e vêm? Em meus olhos, é tempo de maré cheia.
segunda-feira, 12 de outubro de 2009
“Pãos ou Pães, é questão de opinães” João Guimarães Rosa
O interfone toca. O garoto vem avisar: é dona Janira. A senhora recebe a notícia um pouco decepcionada, esperava que fosse outra pessoa. Num repente, como se tivesse se lembrado de algo, avança sobre o pacote de pães deixado sobre a mesa. “Vou esconder este pão, não quero que esta mulher coma”. Abre o armário rapidamente, enfia o pacote lá dentro, empurra a porta com veemência. Age com destreza inesperada para seus noventa e sete anos apoiados numa bengala. Neste instante, a mulher, dona Janira, entra. E a flagra nesta posição, o corpo largo inclinado para o armário, as mãos fechando a porta, uma expressão de quase susto que poderia delatá-la.
A cumprimenta sorrindo e diz, oferecendo uma sacolinha:
- Trouxe uns pãezinhos para a senhora, dona Lucinda.
A cumprimenta sorrindo e diz, oferecendo uma sacolinha:
- Trouxe uns pãezinhos para a senhora, dona Lucinda.
A Senhora
No rádio, um brega paraense. A menina, nem gente quase, ensaia palmas e balança o corpo miudinho ao ritmo amazônico. Da letra, me esqueci. Mas, claro, falava de amor. A senhora diverte-se com a cena e a incentiva, ela própria surda a não poder ouvir a canção. Vejo, estremeço. Por um instante, a cena me parece uma trégua entre a sombra da morte que se aproxima e a luminosidade da vida que começa.
Foi a senhora quem me ligou. Disse com sua voz um tanto lúgubre, um tanto assoprada, que está muito cansada. Com muito sono. Mas tem medo de se deitar e não acordar mais. Dramaticidade lusitana. Digo para que ela não pense assim, mas sei que tem razão. Dona Lucinda. A morte me parece tão próxima, tão inevitável, como se alguém muito doente.
Vou vê-la, passo uma noite em seu apartamento. Medo, talvez, que ela tenha mesmo algum mal estar enquanto só. Vontade de ajudar com a presença da menina. Não sei.
Sei que me surpreendo ao ouvi-la falar do genro, da neta, da nora, da ‘preta’. O rosto duro, a fala dura. Repreende a conduta alheia com um orgulho infantil, como se adolescente ainda ignorante das voltas que o mundo da. A irmã bem me avisara que ela era rancorosa. A irmã... Quase tão velha, quase tão rancorosa.
Digo a ela, como se ela fosse jovem e eu tivesse a sabedoria da velhice, que já faz tanto tempo... Nas entrelinhas digo que não vale a pena tanto ressentimento, que o tempo é remédio e água, lava alma e trás a cura. Mas a resposta me deixa muda. “Nunca que vou esquecer minha filha”. Então, é seu entendimento, o rancor se faz justo pelo apelo do amor materno. Quero gritar “senhora, senhora! Ela vem, ela vem! A morte vem depressa! Não há mais tempo para depurar, para desgastar! Ela vem, senhora!”. Quero dizer a ela que não há mais horas para isto. Como no corredor da morte, quando vem o padre ouvir a última confissão, lembrando que aos arrependidos Deus trará perdão. Me surpreende que seja assim seu proceder.
Não tenho autoridade para lhe dar sermão. Quem poderia ter? Aos noventa e sete anos, a senhora percorreu caminhos demais, não há quem possa lhe falar de certo ou errado. Tento ajudar silenciando sobre os casos, não encomprido assuntos de mal dizer. Apenas mostro que me interesso mais por ouvir a história de sua vida. A morte da mãe, a madrasta, o namorado. A vida que valeu suas penas, que lhe moldou a pessoa que hoje é.
Mas há algo de estranho nesta relação. Habituei-me a pensar nas pessoas mais velhas como sabias e instrutoras. Mas esta, na verdade, desperta o que há de maturidade em mim, me obriga a ser delicadamente materna, como fosse eu a mulher experiente.
E com a menina, há em seus olhos uma trégua nos reclames e a fala dificultada conta que há um gato. Um gatão, olhe ali o gatão. A menina, pequenina, nina, não bem compreende. Mas seus olhozinhos atentos acompanham intrigados a senhora com interesse. Outra hora, a boca torta canta para que o bicho papão deixe o neném dormir sossegado. E suas mãos inchadas passeiam pelo corpinho enxuto de minha filha em cócegas que lhe arrancam gargalhadas. Pequena, pequenina, infante entregue em risos de carinho. Não a sabe velha, não a sabe doente. Não a vê bela ou feia. As duas apenas se entendem. Trocam afeto sincero.
Para mim, a senhora, é feita de mistério. Me abre um vinho tinto e, apoiada na bengala, me prepara o almoço saboroso. Um sem número de segredos. A representação viva, muito viva, de historias humanas entrelaçadas, de perdas e acúmulos, de assentamento e partida. Para mim, a senhora é como um róseo unicórnio, sentado num sofá de tecido verde escuro. Não a adivinho, não a creio. Apenas a vejo com olhos de ternura e despedida.
(Dona Lucinda faleceu dia 29 de setembro de 2009, aos 99 anos e 7 meses).
Vou vê-la, passo uma noite em seu apartamento. Medo, talvez, que ela tenha mesmo algum mal estar enquanto só. Vontade de ajudar com a presença da menina. Não sei.
Sei que me surpreendo ao ouvi-la falar do genro, da neta, da nora, da ‘preta’. O rosto duro, a fala dura. Repreende a conduta alheia com um orgulho infantil, como se adolescente ainda ignorante das voltas que o mundo da. A irmã bem me avisara que ela era rancorosa. A irmã... Quase tão velha, quase tão rancorosa.
Digo a ela, como se ela fosse jovem e eu tivesse a sabedoria da velhice, que já faz tanto tempo... Nas entrelinhas digo que não vale a pena tanto ressentimento, que o tempo é remédio e água, lava alma e trás a cura. Mas a resposta me deixa muda. “Nunca que vou esquecer minha filha”. Então, é seu entendimento, o rancor se faz justo pelo apelo do amor materno. Quero gritar “senhora, senhora! Ela vem, ela vem! A morte vem depressa! Não há mais tempo para depurar, para desgastar! Ela vem, senhora!”. Quero dizer a ela que não há mais horas para isto. Como no corredor da morte, quando vem o padre ouvir a última confissão, lembrando que aos arrependidos Deus trará perdão. Me surpreende que seja assim seu proceder.
Não tenho autoridade para lhe dar sermão. Quem poderia ter? Aos noventa e sete anos, a senhora percorreu caminhos demais, não há quem possa lhe falar de certo ou errado. Tento ajudar silenciando sobre os casos, não encomprido assuntos de mal dizer. Apenas mostro que me interesso mais por ouvir a história de sua vida. A morte da mãe, a madrasta, o namorado. A vida que valeu suas penas, que lhe moldou a pessoa que hoje é.
Mas há algo de estranho nesta relação. Habituei-me a pensar nas pessoas mais velhas como sabias e instrutoras. Mas esta, na verdade, desperta o que há de maturidade em mim, me obriga a ser delicadamente materna, como fosse eu a mulher experiente.
E com a menina, há em seus olhos uma trégua nos reclames e a fala dificultada conta que há um gato. Um gatão, olhe ali o gatão. A menina, pequenina, nina, não bem compreende. Mas seus olhozinhos atentos acompanham intrigados a senhora com interesse. Outra hora, a boca torta canta para que o bicho papão deixe o neném dormir sossegado. E suas mãos inchadas passeiam pelo corpinho enxuto de minha filha em cócegas que lhe arrancam gargalhadas. Pequena, pequenina, infante entregue em risos de carinho. Não a sabe velha, não a sabe doente. Não a vê bela ou feia. As duas apenas se entendem. Trocam afeto sincero.
Para mim, a senhora, é feita de mistério. Me abre um vinho tinto e, apoiada na bengala, me prepara o almoço saboroso. Um sem número de segredos. A representação viva, muito viva, de historias humanas entrelaçadas, de perdas e acúmulos, de assentamento e partida. Para mim, a senhora é como um róseo unicórnio, sentado num sofá de tecido verde escuro. Não a adivinho, não a creio. Apenas a vejo com olhos de ternura e despedida.
(Dona Lucinda faleceu dia 29 de setembro de 2009, aos 99 anos e 7 meses).
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